|
Index
|
|
Anexos
Documento 1:
Documento 2:
|
|
Sumário: No ano de 1938, Marcelo Caetano realizou uma viagem aos arquipélagos dos Açores e da Madeira com o objectivo de colher elementos para a elaboração de um estatuto político-administrativo que o Estado Novo pretendia aplicar nas ilhas. Dessa viagem, resultaram, pelo menos, os dois documentos que se publicam. Na carta particular ao Ministro do Interior (doc. 1), tece considerações sobre a vida política na Horta, no seio da União Nacional, bem reveladores dos conflitos que existiam para o controlo desse organismo. No relatório oficial (doc. 2), analisa a situação político-administrativa, económica e social, apresentando propostas que acabariam por ser incluídas no estatuto de 1940. A leitura do documento permite compreender não só as diferenças entre os distritos mas também a filosofia subjacente ao modelo de administração, centralizador, que vigorou nos arquipélagos no regime de Salazar. |
|
Summary: In 1938 Marcelo Caetano visited the Azores and Madeira archipelagos. He was commissioned by the Portuguese government to perform a survey intended to provide a thorough information aimed to the purpose of preparing a formal statute ruling the administration in the islands according to the guidelines of a newly started political regime under Salazar’s leadership. The outcome of Caetano’s visit is twofold: a private letter addressed to the Home Affairs Minister with relevant information regarding Horta’s political performance and intrigue of rival members of the party «União Nacional» and an in-depth report on the social, economic and political situation of the islands. The author’s proposals were later incorporated in the law ruling the administration of the islands, following a centralized pattern in force under Salazar’s regime. |
|
Carlos Enes – R. Casal da Serra, Lote C, 23 - 6º Esq., 2735 Rinchoa |
|
Palavras chave: Açores, Madeira, Marcelo Caetano, visita de 1938 |
Introdução
Marcelo Caetano (1906-1980) foi o obreiro da legislação que norteou a vida político-administrativa no arquipélago, durante o período do Estado Novo. Apesar de não ter exercido cargos governativos até aos anos 40, colaborou com Salazar logo em 1929, na qualidade de auditor jurídico do Ministério das Finanças. Professor na Faculdade de Direito, exerceu um papel de relevo na redacção do projecto da Constituição de 1933 e foi o autor do Código Administrativo de 1936.
Marcelo Caetano, apesar de algumas divergências com Salazar, representou o papel de continuador da filosofia do ditador, no que respeita à administração das ilhas. Ao publicar o Decreto 15.805, de 31 de Julho de 1928, o então ministro das Finanças transformou as Juntas Gerais numa espécie de «tesoureiros-pagadores» do pessoal e serviços, sem possibilidade prática de qualquer tipo de política administrativa autónoma. A situação provocou algum descontentamento e as pressões sobre Salazar não se fizeram esperar, com demissões das comissões administrativas de Angra e Ponta Delgada. Salazar não cedeu e aproveitou a eclosão da revolta dos deportados, em 1931, para se colocar numa posição ainda mais forte. Demitiu, embora temporariamente, o Delegado Especial do Governo e acabou com a moeda insulana, que havia resistido a todos os ataques até à época.
O avolumar da crise económica e social levou a que em São Miguel se desenrolasse, em 1932-33, uma grande campanha pró-turismo com o objectivo de atenuar a crise. Toda a campanha caracterizou-se pela contestação à política de Salazar face às ilhas. As elites locais, sem pretenderem o regresso à «balbúrdia» da I República, jogaram contudo todos os trunfos para que Salazar alterasse a sua posição. Mas a meio de todo o processo não conseguiram controlar as manifestações de rua que haviam promovido. Os velhos republicanos, a maçonaria local, mas também os nacionais-sindicalistas, exerceram toda a sua influência no meio operário que desencadeou uma greve geral. Com a demissão do governador civil, o poder caiu na rua e a intervenção militar provocou algumas mortes no Largo da Matriz, em Fevereiro de 1933. Com mais uma acção fracassada, os autonomistas perderam a capacidade negocial e o reforço do poder de Salazar a nível nacional acabou com todas as veleidades.
A legislação que estruturou o Estado Novo não contemplou as pretensões dos poucos que ainda pugnavam por um regime verdadeiramente autonómico. A Constituição de 1933 remeteu para um estatuto especial a administração insular, o Código Administrativo de 1936 reafirmou esse princípio e, no ano seguinte, o governo apresentou uma proposta sobre o regime administrativo das ilhas. Só a Junta Geral de Ponta Delgada contestou alguns aspectos da proposta. Vários deputados na Assembleia Nacional fizeram eco das discordâncias, mas no final do debate vingou a posição do governo com alterações muito superficiais.
Foi neste contexto que Marcelo Caetano se deslocou às ilhas, no ano de 1938. A visita gerou alguma expectativa porque desde a viagem do rei D. Carlos, em 1901, só um representante do governo havia passado pelo arquipélago. Para marcar a diferença em relação à I República, o Estado Novo encarregou o ministro do Comércio e Indústria, Sebastião Ramires, de uma viagem relâmpago em 1934, condicionada pela escala do navio da Insulana. A visita de Marcelo Caetano representava, portanto, o primeiro contacto mais demorado com objectivos bem definidos: conhecer a realidade insular para estabelecer um novo regime administrativo, embora as suas linhas gerais já tivessem sido definidas pela Lei n.º 1967, sem que para tal se tivesse realizado qualquer consulta. Outro objectivo era uniformizar a administração, dado que o distrito da Horta não se regia pelo estatuto autonómico promulgado em 1895. A Horta não havia requerido a sua aplicação, tendo em conta as fracas receitas, preferindo governar-se pela legislação aplicada ao continente.
Desta viagem resultaram, pelo menos, dois documentos enviados ao ministro do Interior, actualmente guardados no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Ministério da Administração Interna, Gabinete do Ministro, maço 506, e que agora se publicam em anexo, respeitando a grafia original. Abaixo comenta-se, brevemente, a visão dos Açores formulada por Marcelo Caetano.
Visão de Marcelo Caetano
No Documento 1, Marcelo Caetano não desperdiçou a oportunidade para definir a sua posição face às «politiquices» locais. Dentro da União Nacional eram constantes as guerras entre grupos que se digladiavam para controlar o aparelho político-administrativo. Infelizmente, só se conhece a opinião relativa à Horta, porque não foram encontradas as cartas sobre Angra e Ponta Delgada. A perspectiva de Marcelo Caetano acabou por vingar no seio do governo, que apoiou os dirigentes locais considerados mais fortes e «susceptíveis de regenerar».
Para uma melhor compreensão do conteúdo da carta, refira-se que Freitas Pimentel, médico, natural das Flores, residindo na Horta, era apontado pelos adversários como um «vermelho do coração» e um homem ligado ao «reviralho». Todavia, isso não impediu que, ainda antes da viagem de Marcelo, tivesse sido dirigente da União Nacional, governador civil substituto e que até tivesse sido proposto pelo governador civil, Silva Mendes, para Grande Oficial da Ordem de Cristo, em 1937. Mas nesse preciso momento, havia caído em desgraça, ao ser acusado de ter caluniado o eng. Nobre Guedes por um desfalque na União Nacional. Para apuramento dos factos, foi aberto um inquérito em que foram ouvidas todas as personalidades da Horta e nada ficou provado contra ele. Contudo, foi afastado dos cargos que exercia até ser regenerado nos anos 40. A partir de então, foi representante dos municípios açorianos à Câmara Corporativa e governador civil [1953 a 1973]. Do seu grupo fazia parte Álvaro Soares de Melo, comandante militar, e ambos eram apoiados em Lisboa pelo coronel Linhares de Lima.
O outro grupo era liderado por Manuel Francisco Neves Jr. (1870-1953), médico e Guarda-mor de Saúde. Velha raposa política, transitou do Partido Regenerador para a República, ligando-se ao Partido Nacionalista. Em 1924, fundou o Partido Regionalista e adesivou ao Estado Novo. Esta facção era apoiada, em Lisboa, pelo Director Geral do Ensino Primário, Manuel Cristiano de Sousa. Nele se incluía António Terra, presidente da Câmara da Horta e dirigente da União Nacional, mas fora demitido dos cargos ainda antes da chegada de Marcelo Caetano. No inquérito entretanto levantado, apurou-se que António Terra havia falseado uma acta e que eram infundadas as calúnias contra Freitas Pimentel.
No Documento 2 Marcelo Caetano mostra ter-se esforçado por compreender a realidade insular. Captou de forma correcta as linhas essenciais da economia de cada uma das ilhas, salientando a falta de articulação do espaço económico açoriano, os bloqueios estruturais ao desenvolvimento, bem como situações conjunturais que afectavam algumas delas. Neste campo, não apresentou soluções, mas denunciou a existência de barreiras alfandegárias anacrónicas entre algumas ilhas. O caso mais grave opunha Graciosa e Terceira, em que para servir interesses de «capitalistas terceirenses» se dificultava a importação de aguardente da Graciosa. Uma situação que levou, aliás, anos a resolver, pois só na década de 60 foram abolidas essas barreiras.
No relatório de Marcelo, ficam bem evidentes as diferenças profundas entre os três distritos, com destaque para o de Ponta Delgada, detentor de receitas superiores às dos outros dois. Sem deixar de realçar a extrema pobreza de vastos sectores da população, resultante de uma má distribuição da propriedade, Marcelo revela um certo deslumbramento pela capacidade de execução de obras públicas, em que a Junta Geral empregava 36% do seu orçamento. Nos outros distritos tal não acontecia, por serem escassas as verbas, mas também porque eram outras as prioridades. No de Angra do Heroísmo, 40% do orçamento era gasto na educação, contra 25% em Ponta Delgada. Por este facto, como o próprio refere, os níveis de alfabetização eram bastante mais elevados do que em Ponta Delgada.
Impressionado com o progresso material, não se coibiu de elogiar a acção dos micaelenses, pelo seu dinamismo e pela qualidade dos quadros técnicos que geriam os diversos organismos. Para as outras ilhas, lamenta o imobilismo, a falta de preparação e a má gestão dos serviços, dando exemplos dos erros cometidos e que era urgente sanar. A sua preocupação centrou-se na procura de uma maior eficácia dos serviços, evitando sobreposições e procurando definir os que ficariam ou na órbita do Estado ou na das Juntas Gerais.
A sua filosofia baseava-se no princípio de que cada um deve gastar conforme o que possui. Para tal, alterou alguns malabarismos orçamentais, nomeadamente no distrito de Angra, que incluía como despesas obrigatórias o arranjo de estradas. E Marcelo Caetano foi peremptório: «A rede de viação aumenta-se quando o dinheiro chega». Deste modo, os orçamentos passaram a ser feitos na lógica do menor gasto possível, de acordo com as receitas locais, evitando o endividamento à banca. As Juntas ficaram assim cada vez mais dependentes do Poder Central que definia não só o montante das comparticipações, como também a prioridade dos investimentos. Essa dependência acentuou-se com a criação dos planos trienais a elaborar pelas Juntas e a aprovar pela Presidência do Conselho.
Com a redução da autonomia política das Juntas Gerais, estas continuaram a exercer o papel de «tesoureiros-pagadores» como já acontecia desde 1928, embora Marcelo Caetano considerasse este regime bastante útil. Paralelamente, propôs uma maior fiscalização dos serviços, a ser realizada por funcionários continentais que se deslocariam temporariamente às ilhas. Esta desconfiança sempre existiu e baseava-se no princípio de que os meios pequenos são mais propícios ao facilitismo, dada a relação de proximidade entre todos. Foi nesta perspectiva, que propôs a deslocação de polícias do continente para as ilhas, para uma maior eficácia na fiscalização.
As considerações lisonjeiras de Marcelo Caetano em relação aos Açores, com destaque para São Miguel, contrastam com as que proferiu para o Funchal. Por um lado, denuncia a inexistência de um «escol madeirense» que «só agora começa a revelar alguns dirigentes dignos desse nome»; por outro, constata a existência de uma enorme massa populacional «inculta e rude». Um relato que revela bem o atraso existente na Madeira, apesar do relativo desafogo económico da Junta Geral, devido ao movimento do turismo, onde a falta de infra-estruturas básicas era mais evidente do que nos distritos açorianos. Perante esta realidade, o estatuto de 1940, incluiu cláusulas específicas para a Madeira quanto às freguesias, onde não havia Junta mas apenas um regedor.
Com esta viagem aos arquipélagos, Marcelo Caetano colheu os dados que considerou importantes para arrumar a casa e fê-lo à sua maneira através do estatuto de 1940: um estatuto minucioso a controlar todos os passos das Juntas Gerais e fortemente centralizador, de acordo com a filosofia da época.
A «contestação» limitou-se quase sempre a aspectos meramente formais, relacionados com o funcionalismo das instituições. Veja-se, por exemplo, o relatório de José Bruno Carreiro, em resposta a um convite do ministro do Interior, em 1939, para analisar o projecto do novo regime administrativo. Sem nunca pôr em causa a filosofia global do projecto, restava-lhe a esperança de que voltassem para o Estado as despesas de alguns serviços para que as Juntas Gerais, aliviadas desses encargos, pudessem elaborar planos de obras e melhoramentos. A reivindicação da autonomia política havia-se esboroado lentamente. Os velhos autonomistas «rezingões» ou já haviam desaparecido ou se submetiam às regras impostas pelo ditador.
Bibliografia
Enes, C. (estudo introdutório e organização) (1996), Luís da Silva Ribeiro, Obras IV, Escritos político-administrativos. Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira.
Idem (1990), Ponta Delgada: o movimento de contestação à Política do Estado Novo em 1932-33. Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, 48: 507-536.
Leite, J. G. R. (organização e prefácio) (1987), A Autonomia dos Açores na legislação Portuguesa – 1892-1947. Horta, Assembleia Regional dos Açores.
Anexos
DOCUMENTO 1
CARTA DE MARCELLO CAETANO AO MINISTRO DO INTERIOR
A bordo do Carvalho Araújo, 4-VIII-38
Ex.mo Snr. Dr. Mário Pais de Sousa
da minha maior consideração:
Findei a minha volta pelos Açores e vou agora a caminho da Madeira onde devo chegar amanhã. Comuniquei a Vª Exª as minhas primeiras impressões sobre Ponta Delgada e Angra: vou agora resumir as que me ficaram da Horta, onde fui inexcedívelmente bem recebido.
A Horta é uma cidade muito pequena, cuja vida se resume a uma só rua (a marginal). Tem pouco comércio, quási nenhuma indústria, e vive da navegação (que é muito rara) e dos cabos submarinos estrangeiros. Às 3 da tarde o trabalho cessa; ás 4 janta-se; às 4 ½ está no café. A avenida marginal é o centro do trabalho e o lugar de descanso, e como todos se vêem constantemente, a todas as horas, os ócios são longos e estéreis (pois se convencionou que é impossível reagir contra a mornaça ou torpor açoreano), Vª Exª está a ver o ambiente de maledicencia, intriga e ódio que se respira. Todavia é preciso não exagerar estas tricas de terra pequena: as rivalidades dos grupelhos políticos que se digladiam alimentam-se, em grande parte, do apoio e da importância que lhe dão certas personalidades políticas daí.
Como Vª Exª sabe, os grupos existentes são dois: o do Dr. Neves, e o do coronel Melo efectivamente chefiado pelo Dr. Freitas Pimentel. Este último grupo é o mais numeroso e que tem gente mais susceptível de regeneração; o primeiro conta com algumas pessoas inteligentes, mas está bastante desacreditado; e a ultima cena da difamação do Eng. Nobre Guedes, positivamente inventada pelo Terra para demolir o Freitas Pimentel mostra a força das armas de que usa para expulsar os outros dos postos administrativos que ocupam.
Em minha opinião o que há a fazer é sustentar o Governador Civil (que é homem experiente e prestigiôso) e não variar de orientação. É inútil tentar conciliar as duas correntes, e tem que se governar com a gente que as constitui, porque não há outra. Balançar de um grupo para outro é alimentar a divisão: acho que melhor será aproveitar um (o que está agora na administração), procurar ajuizá-lo e limpá-lo de um ou outro elemento pior, porque com a continuidade os outros irão esmorecendo, perdendo esperanças, e como só a influencia do Dr. Neves os mantinha, talvez a recente saída dele ajude a que se dissolvam.
Aqui tem Vª Exª o que me parece sobre a atitude a tomar para com aquele meio mefítico e note Vª Exª bem: quanto mais importância lhe derem, pior. Deixemos que os mortos enterrem os seus mortos.
Devo estar de regresso a Lisboa à volta de 15 de Agosto e então terei ocasião de, de viva voz, elucidar melhor Vª Exª de quem sou, com a melhor consideração mº att. e obg.mo
Marcello Caetano
DOCUMENTO 2
Ex.mo Sr. Ministro do Interior
Em complemento dos projectos de decreto que apresentei já a V. Ex.ª, julgo do meu dever reunir algumas notas colhidas na visita que fiz aos distritos insulares e que possam elucidar o Governo sôbre os problemas que lhes dizem respeito.
I - Distrito de Ponta Delgada
Regime administrativo – Foi deste distrito que partiu o movimento de opinião tendente à obtenção da autonomia das Juntas Gerais nas ilhas. E, de facto, publicado em 24 de Março de 1895 o decreto orgânico da autonomia, logo em 18 de Novembro seguinte o regime foi aplicado a Ponta Delgada, a pedido de dois terços dos cidadãos elegíveis do distrito.
Economia distrital – O distrito compõe-se apenas de duas ilhas: a de S. Miguel, que é a maior do arquipélago, e a da Santa Maria, pequena e pobre.
A ilha de S. Miguel tem uma economia que pode dizer-se próspera apesar de se ressentir muito da deminuição das remessas dos emigrantes, caudal de ouro que a vivificava. Predomina a grande propriedade, pois a terra está reunida nas mãos de poucos senhores, mas cultivada intensivamente, em regime de pequena exploração. Nas serras existem consideráveis extensões de pastagem, etc. partes baldias, onde se cria o gado. Algumas culturas ricas, como o ananás. Indústrias diversas: lacticínios, chá, fiação e tecelagem, bordados, alcool, tabaco... Os salários são, no entanto, baixíssimos; empregam-se freqüentemente nas fábricas mulheres e menores; a aprendizagem não tem regra, é por vezes gratuita e sem prazo fixo. Há miséria nalgumas partes da ilha, cuja população aumenta ràpidamente (cêrca de 140:000 habitantes), sem que o excedente possa escoar-se pela emigração.
Situação financeira – A situação financeira da Junta Geral é boa, e boa é também a dos municípios.
Em 1937 as receitas da Junta Geral somaram 8:724:308$04 e as despesas 8:289:602$54, resultando um saldo de 434.705$50, mas êste saldo ficou parcialmente cativo de algumas dívidas passivas, cuja soma é pequena.
As principais receitas são as dos impostos directos gerais, de que se cobraram 7:000 contos, números redondos, sendo a maior parcela a da contribuição predial: 4:133 contos. As matrizes, porém, são as mais altas do País, e por isso os rendimentos colectáveis tendem a baixar.
A Junta Geral não lança adicionais.
A dívida é insignificante: o encargo dos juros e amortização não excede 205 contos, ou sejam 2,3 por cento da despesa total, devendo notar-se que uma parte é recuperada pela Junta, pois se trata de um empréstimo feito na Caixa Geral de Depósitos para socorrer os sinistrados do terramoto dos concelhos de Nordeste e da Povoação. Os socorridos pagam à Junta uma taxa de 2 por cento, que em 1937 rendeu à volta de 48 contos.
A despesa está equilibrada: gasta o distrito com o serviço das obras públicas 36 por cento do total, com o ensino primário 18 por cento, com assistência 7,5 por cento, com o liceu 7 por cento e com a polícia 5 por cento. Todos os outros serviços consomem percentagens muito pequenas.
Agricultura e pecuária – Estes serviços estão montados com excesso de pessoal. Compreendem serviços agronómicos, silvícolas, pecuários e zootécnicos.
Os serviços agronómicos transitaram do Estado e têm exercido no distrito acção profícua. Com êles despende o distrito 123 contos, dos quais 109 em pessoal.
Os serviços silvícolas foram criados pela Junta há uma dezena de anos. É na verdade indispensável proteger a flora lenhosa do distrito e repovoar matas decadentes, tanto mais que a indústria local faz grande consumo de madeiras para a embalagem do ananás. Mas a Junta limitou-se a nomear um engenheiro silvicultor, que nada mais fez que uns estudos iniciais. Já por mais de uma vez a Junta solicitou ao Governo a aplicação do regime florestal às matas da ilha, sem que tivesse sido atendida, e o silvicultor limita-se a tratar da plantação e poda das árvores das estradas!
Parece conveniente que se dê às Juntas Gerais a faculdade de submeter as matas ao regime florestal parcial e de simples polícia, pois estão em condições óptimas para avaliar da sua necessidade. Quanto aos serviços florestais, deve começar-se por uma simples regência, e as Juntas que chamem silvicultores competentes e experimentados para os estudos que haja a fazer, como de resto o ano passado se fez para o povoamento de lagoas. Actualmente a Junta despende 45 contos com os pseudo serviços silvícolas, dos quais 30 contos para pessoal.
Os serviços pecuários constituem a Intendência de Pecuária, que transitou do Estado: custaram 46 contos, dos quais 40 para pessoal.
Mas além da Intendência de Pecuária herdou a Junta uma estação zootécnica que transitou do Estado, com outro veterinário por director. A estação está bem instalada e parece trabalhar, mas não se justificam no distrito dois veterinários a dirigir serviços conexos. Tudo indica a integração dos serviços zootécnicos na Intendência Pecuária. A despesa com estes serviços é de 85 contos, dos quais 33 com pessoal.
Obras públicas – Existe uma Direcção de Obras Públicas, em que estão integrados os serviços da circunscrição industrial. À testa da Direcção encontra-se um engenheiro de grande valor, Francisco Pacheco de Castro, a quem se deve a actividade e o brilho que êste sector da administração revela em Ponta Delgada: boas estradas, obras hidráulicas notáveis (como a da fixação do nivel da Lagoa das Sete Cidades pela construção de um canal de escoamento das águas até ao mar), obras de arte difíceis (túneis e pontes magníficas), edifícios, etc.
Em 1937 a Junta gastou neste serviço 3:132.197$50, mais de um têrço da despesa total, sendo apenas 574 contos em pessoal.
Construções e obras novas: de estradas, 634.093$11; de edifícios, 114.642$58; portos de mar, farolins e muralhas, 13.762$; túnel de esgôto na Lagoa das Sete Cidades, 192.261$86.
Conservação e reparação de estradas, 1:392 contos; de edifícios 50 contos; portos de mar e farolins, 31 contos; ribeiras e lagoas, 16 contos, fora outras pequenas verbas.
Do Estado recebeu a Junta em comparticipações a importância de 182 contos, ou seja pouco mais de 5 por cento do despendido em obras públicas.
Há aqui a resolver dois problemas:
1. o Os portos de pesca não estão a cargo da Junta Geral e as receitas por êles produzidas são arrecadadas pelo Estado; todavia é a Junta que, para os não deixar arruinar, tem cuidado da sua construção e conservação, mas devem passar para a jurisdição da Junta Autónoma dos portos de Ponta Delgada, como sucede nos outros distritos insulares;
2. o Começa a desenvolver-se o turismo para as Furnas e Sete Cidades, embora as actuais estradas sejam impróprias para a circulação de caravanas automóveis, tal é a quantidade de pó que se levanta e que nada deixa ver, tornando a viagem um verdadeiro suplício; é urgente calcetá-las, como na Madeira, mas essa enorme despesa não pode o distrito fazê-la sem especial comparticipação do Estado.
Serviços de viação – Tem sede em Ponta Delgada a Circunscrição Açôres dos serviços de viação. É um erro criar serviços para todo o arquipélago pensando que assim se descentraliza: a dificuldade de comunicações entre a Horta e Ponta Delgada é tam grande ou pouco menor do que entre a Horta e Lisboa. Por outro lado, o automobilismo está pouco desenvolvido nos Açores, nem as ilhas se prestam muito a grande incremento dêsse meio de transporte; nalgumas, como as Flores e o Corvo, não há automóveis, noutras há dois ou três. O chefe dos serviços de viação nos Açôres é um oficial da reserva de engenharia director das obras militares, que a Junta Geral de Ponta Delgada contratou por 500$ mensais. Não me parece que haja vantagem em tal organização. Deve descentralizar-se a competência dêstes serviços nas Juntas Gerais e concentrar apenas a parte técnica (exame de condutores e concessão de cartas). Para o resto chegam os engenheiros ou condutores dos serviços industriais dos diversos distritos, que são diplomados em electricidade ou em máquinas.
Saúde pública – Estes serviços estão montados por forma dispendiosa e sem a eficácia correspondente. A Junta Geral herdou-os do Estado assim. Distinguem-se os serviços de sanidade marítima dos de sanidade terrestre, cada um com seu inspector. O pôrto de Ponta Delgada é estação de saúde de 1. a classe e como tal tem de possuir escrivão-intérprete, remadores, guardas de saúde, pôsto de desinfecção e hospital de isolamento. Tudo isto possue; mas o que não há é navegação que justifique as luxuosas instalações e o abundante pessoal com que o regulamento de saúde de 1901 dotou o distrito. Em 1937 entraram no pôrto de Ponta Delgada 337 navios, dos quais 103 de carga, 113 de passageiros, 44 de guerra, 71 de cabotagem e 6 de recreio. Contam -se aqui as duas entradas (à ida e à volta) dos navios que fazem a carreira das ilhas. De facto, a visita de saúde não é requerida mais de oito ou dez vezes o máximo por mês.
O estado sanitário do distrito é bom. Há mais de uma dezena de anos que se não produzem casos de peste bubónica, não tem havido epidemias e a varíola, por exemplo, não é endémica, produzindo-se casos de vez em quando. O hospital de isolamento está pois quási sempre desocupado e o pôsto de desinfecção inactivo.
Quando estive em Ponta Delgada o inspector de sanidade terrestre acumulava sem esforço a sanidade marítima, vaga pela aposentação do respectivo funcionário. Por isso proponho uma organização mais simples e económica para estes serviços.
Quanto a hospitais gerais, há-os em todos os concelhos, sustentados pelas Misericórdias, embora vivendo com dificuldades. A Junta Geral gasta, em subsídios que lhes dá, 110 contos anuais.
Assistência – O melhor estabelecimento é a Casa de Saúde do Egipto, para loucos do sexo masculino, montado pelos irmãos de S. João de Deus e onde são internados os alienados pobres, cuja diária – hoje 9$ – é paga pela Junta Geral. Está instalada em bons edifícios construídos pelos irmãos e o tratamento é excelente. A Junta adquiriu agora uma casa para instalar o manicómio das mulheres, que actualmente estão internadas, em condições deficientes, no Hospital da Misericórdia de Ponta Delgada. A Junta subsidia ainda as famílias pobres a cujo cargo estejam loucos inofensivos. Gasto: com diárias pagas ao Egipto, 157 contos; diárias à Misericórdia. 81 contos; subsídios a alienados a cargo das famílias, 47 contos; total na assistência a alienados, 285 contos.
A assistência em Ponta Delgada não me pareceu adiantada. A Junta Geral, em obediência ao artigo 10. o, n.º 4. o, do decreto n.º 15:035, distribue subsídios individuais periódicos a menores expostos, desvalidos ou abandonados com mais de dez e menos de dezóito anos, tendo gasto em 1937 mais de 47 contos; esta esmola parece-me inconveniente e seria preferível gastar essa quantia em subsidiar uma obra de assistência e educação de menores. Visitei um único asilo, fundado por iniciativa particular, na Ribeira Grande; pretende ser uma escola prática agrícola, mas afigurou-se-me mal organizado e pior dirigido, embora entregue a um sacerdote digno e inteligente.
Algumas senhoras dedicam-se a uma obra interessante de assistência infantil, que bem merece acarinhada e desenvolvida.
Polícia – A polícia nas ilhas adjacentes tem ainda, a antiga organização: um comando distrital, com atribuições de administração do concelho, uma secretaria e um corpo de guardas, acumulando as funções de polícia de segurança pública, polícia administrativa, polícia de investigação criminal, polícia de viação, polícia de vigilância e defesa social, polícia internacional, tudo subordinado ao governador civil.
A polícia de Ponta. Delgada, entregue há anos a um oficial inteligente, estudioso e trabalhador, é, na complexidade das suas funções, modelar. Dispõe de excelentes ficheiros, bom material de identificação e investigação, está bem armada, com pistolas, espingardas e armas automáticas, bem adestrada e com pessoal novo e forte, parte do qual possuidor de transportes mecânicos próprios.
Há vantagem todavia em, numa futura organização, dispor que parte, pelo menos, dos guardas sejam de fora dos distritos onde servem, pois a familiaridade com que todos são tratados pela população não pode deixar de tolher-lhes a autoridade.
O efectivo da polícia é insuficientíssimo, pois não chega para mais de três ou quatro postos de guarda na cidade, em regime de serviço intensivo.
Ora em toda a parte rural da ilha me falaram na necessidade de guardas destacados para os municípios, dada a deficiência da polícia feita pelos zeladores.
A Junta Geral tem gasto bastante na instalação e apetrechamento da polícia, que em 1937 lhe custou 400 contos (pessoal incluído). Mas ser-lhe-á difícil suportar um aumento de despesa, quando tanto carece do dinheiro para outros fins produtivos.
Instrução – Tem o distrito um liceu nacional, instalado num velho palácio com vasta cêrca. É exteriormente um bom edifício, mas por dentro oferece toda a espécie de defeitos pedagógicos: salas pequenas e recebendo má luz, corredores numerosos e estreitos, laboratórios deficientes, o gimnásio no antigo celeiro térreo, péssimo material didáctico, etc. Carece absolutamente de obras radicais de adaptação.
A escola de magistério primário estava encerrada. Visitei as escolas primárias anexas e uma escola infantil, que me pareceu verdadeiramente modelar.
O distrito tem grande percentagem de analfabetos e dispõe de 183 lugares em escolas primárias e dois postos escolares, tendo sid o recentemente criados mais dezóito. Todavia torna-se difícil à Junta fazer o esfôrço necessário para dar ensino a todos os que dêle carecem; apenas o estão recebendo 40 por cento das crianças em idade escolar!
A Escola Industrial Velho Cabral é um valor nulo. Carece de urgente reforma, feita com senso realista: talvez conversão em escola prática de agricultura, com ensino anexo de artes e ofícios; porque neste distrito, que vive sobretudo da agricultura, não há ensino elementar agrícola!
As câmaras dispensam atenção à instrução, tendo-se ultimamente construído alguns edifícios escolares com comparticipação da Junta Geral.
Biblioteca Pública e Museu Carlos Machado – A Biblioteca de Ponta Delgada pertence ao Estado e está sob a orientação técnica e na dependência administrativa e disciplinar da Inspecção Geral das Bibliotecas e Arquivos, de modo que a Junta Geral só paga as despesas.
A referida Inspecção nada orienta nem inspecciona: a organização e catalogação da biblioteca são caóticas e a disciplina deixa a desejar. A Junta Geral olha resignada para esta desordem visível... paga. Cremos que tal estado de cousas não deve continuar.
O Museu Carlos Machado, com secções de arte e de história natural, é um bom núcleo que oferece já muito interêsse, tendo merecido liberalidades do Príncipe de Mónaco e de vários naturalistas locais. Parece-me digna de estímulo esta criação.
Laboratório Químico-Bacteriológico – Instalado em edifício próprio, reúne duas secções, onde se trabalha com aparente actividade.
Turismo – A ilha de S. Miguel é toda ela digna de interêsse, mas possue dois lugares privilegiados para o turismo: a Lagoa das Sete Cidades e as Furnas, que são visitadas já por muitos nacionais e numerosos estrangeiros, sobretudo os que vão em trânsito nos navios italianos que fazem escala, para ou da América do Norte, em Ponta Delgada. Em 1937 registaram-se 11:504 turistas estrangeiros. Há uma emprêsa de turismo micaelense – a Terra Nostra – que tem um confortável hotel em Ponta Delgada e outro, que é excelente, nas Furnas.
Não me parece que haja vantagem em criar um organismo oficial especial para o turismo mas acho conveniente que sejam concentradas na Junta Geral as atribuições sôbre turismo que o Código Administrativo confere às câmaras, facultando-se-lhe também as receitas das zonas turísticas; será a forma de se poder exigir à Junta, sem prejuízo da sua obra normal, a comparticipação condigna com o Estado no calcetamento das estradas de turismo, que é trabalho urgentíssimo.
Conclusões – A impressão que me deixou o exame minucioso que fiz da administração distrital em Ponta Delgada levou-me às seguintes conclusões:
1. o A autonomia, administrativa e financeira é necessária e útil nos distritos insulares;
2. o O distrito de Ponta Delgada tem sabido usar e aproveitar essa autonomia (veja-se o mapa I, com as obras públicas realizadas neste regime);
3. o Há um escol administrativo na ilha de S. Miguel capaz de exercer o govêrno local;
4. o A situação financeira da Junta Geral é boa; esta não carece de mais receitas e sabe empregar as que tem;
5. o Para as obras de grande envergadura, porém, a Junta Geral precisa da comparticipação do Estado, sobretudo para a construção e adaptação de edifícios escolares e calcetamento das estradas de turismo.
II - Distrito de Angra do Heroísmo
Regime administrativo – Publicado em 1895 o decreto que criou o regime de autonomia, só três anos passados, em 6 de Outubro de 1898, êle foi aplicado no distrito de Angra. Não havia grande entusiasmo da parte dos angrenses, e ainda hoje se não sente no distrito aquele arraigado amor à descentralização que há nas camadas cultas de S. Miguel. Para mais, o partido que estava no poder quando em 1898 veio a autonomia para Angra não era o mesmo que tinha provocado o pedido de aplicação, e os funcionários nomeados de novo pertenceram todos ao partido que à data da campanha de autonomia se achava na oposição...
Situação económica – O distrito compõe-se de três pequenas ilhas: Terceira, S. Jorge e Graciosa, separadas umas das outras por algumas horas de mar.
Essas três ilhas são três economias distintas. A ilha Terceira produz o seu pão, tem abundante gado, exporta carne e lacticínios (manteiga e queijo), produz algum vinho. Mas não tem indústria, pouco comércio, e é servida apenas pelos navios da Emprêsa Insulana (dois por mês) e por uns iates de cabotagem.
A ilha de S. Jorge vive, pode dizer-se, de duas fontes de riqueza (alem da agricultura): os lacticínios e a pesca da baleia. As suas relações económicas estreitam-se mais com a Horta que lhe fica mais próxima, do que com Angra.
A ilha Graciosa é a única onde não existe gado, e não produz, portanto, lacticínios. Toda ela é horta e vinhedo.
A estas três economias correspondem três regimes fiscais, três pautas de impostos indirectos, três proteccionismos dentro de um só distrito! A oposição é, sobretudo, marcante no que respeita ao vinho. O mercado consumidor natural da Graciosa é a Terceira; mas esta ilha também já tem o seu vinho, e defende-se do que vem de fora. O vinho da Graciosa presta-se para queimar, dá boa aguardente; simplesmente os capitalistas de Angra estão interessados nas fábricas de alcool de batata doce de S. Miguel, e, como o alcool simples paga de direitos e impostos tanto como a aguardente, importam-no, para a Terceira, de S. Miguel e desdobram-no com água, obtendo assim uma espécie de aguardente inferior, mais barata do que a da Graciosa.
É um problema muito melindroso o do sistema fiscal dos municípios nas ilhas. Por um lado, porque dos impostos cobrados nas alfândegas tiram as câmaras a principal receita, aboli-los ou proïbir a cobrança no acto do despacho é arruinar todos os municípios insulares, não só porque a incidência sôbre a venda para consumo (como no continente) é muito menos rendosa, como porque as obrigaria a um complicado aparelho de fiscalização e cobrança, vexatório e caro, absorvente da maior parte dêsse rendimento, já de si deminuído.
O melindre do aspecto fiscal agrava-se ao encarar o aspecto económico. Não há dúvida de que a maior parte das ilhas tem as suas economias diferenciadas em relação às outras. A natureza insular dos territórios empresta-lhes o carácter de países fiscais autónomos. Compreende-se que, cultivando os terceirenses o seu vinho, procurem consumi-lo de preferência ao vinho de fora – vindo de outras ilhas ou do continente. Mas é chocante a existência de barreiras fiscais, como estas, entre ilhas do mesmo distrito. Acresce ainda que no exemplo que demos de alcool e da aguardente, a pauta é o instrumento de exploração ao serviço de meia dúzia de capitalistas terceirenses, em prejuízo do pequeno vinicultor da Graciosa.
O traço comum das economias da Terceira e de S. Jorge é a indústria dos lacticínios. Não é difícil prever, porém, uma crise grave e próxima nesta riqueza. Ambas as ilhas têm grandes baldios para pastagens, onde o gado passa o ano, à sôlta, de verão e de inverno, sem abrigo: o pastor apenas procura as vacas para as mungir. Mal alimentadas, produzem leite de qualidade deficiente, desnatado em postos mal apetrechados e sem condições higiénicas: o soro é para os porcos, a nata segue para as fábricas. Os postos, por via de regra, pertencem a cooperativas de produtores, as fábricas a capitalistas. A manteiga e o queijo assim obtidos são de inferior qualidade e não tardará que os mercados consumidores, educados pela apresentação de melhores produtos (os do distrito de Aveiro), recusem os grosseiros lacticínios açoreanos. Isto é fatal se os angrenses não se acautelarem a tempo; mas, como de costume, a crise que vier a produzir-se será imputada ao Estado.
O distrito de Angra era particularmente beneficiado pela emigração para os Estados Unidos: as remessas dos emigrantes davam vida aos relativamente numerosos estabelecimentos de crédito de Angra e Vila da Praia, que não o reduzido comércio local. O estancamento da emigração e o desemprêgo nos Estados Unidos não só deminuíram muito as remessas como têm provocado o retôrno de fundos depositados e colocados cá, para ocorrer a precisões de lá.
Deve notar-se que neste distrito há pouca iniciativa. Na ilha de S. Jorge uma numerosa família foi contemplada com a herança de um parente morto na América, no montante de bastantes dezenas (mesmo até de centenas) de milhares de contos: êsse dinheiro não luziu na economia das ilhas.
Situação financeira – A situação financeira da Junta Geral é francamente má, formando contraste com a de Ponta Delgada: êsse é o grande problema do distrito.
As receitas que em 1928 passaram para a Junta são, de toda a maneira, insuficientes para cobrir as despesas postas a seu cargo.
É certo que havia pessoal de mais nos serviços : a responsabilidade do excesso de funcionários e da sua má qualidade pertence ao Estado, pois eram, seus os serviços que transitara m para a Junta.
Deve fazer-se justiça às comissões administrativas da Junta Geral que passaram de 1928 para cá: todas se esforçaram por reduzir quadros, simplificar serviços, suprimir lugares, e hoje o pessoal está quási reduzido ao indispensável.
A actual gerência do coronel Silva Leal tem sido dominada pela preocupação de economizar: mas o orçamento está incompressível, não se fazem obras públicas e a Junta não pode olhar pelas ilhas de S. Jorge e Graciosa.
Cessada em 1936 a compensação que o Estado concedia, nos termos do § 1. o do artigo 2. o do decreto n.º 15:805, começaram breve as dificuldades. O equilibrio entre a receita e a despesa obtém-se a custo e com sacrifício de necessidades essenciais.
Acresce a isto que a Junta tem usado e abusado do crédito: tinha desde 1927 uma conta corrente com a Caixa Económica da Santa Casa da Misericórdia, destinada a antecipações de receita (uma fonte de dívida flutuante a 6 ½ por cento, mais 1 por cento de comissão sôbre a importância do crédito aberto), e contraiu empréstimos, também em conta corrente caucionada (!), na Caixa Económica de Angra do Heroísmo e na Caixa Geral de Depósitos: no orçamento para 1938 está prevista a quantia de 691.469$70 de encargos da dívida (juros e amortização), mas há a deduzir 480 contos previstos em receita extraordinária para operações de tesouraria por movimentação da conta corrente da Caixa da Santa Casa.
Notar-se-á que no orçamento para 1938 a receita ordinária soma 3:631 contos e a despesa, que na deficiente técnica orçamental dos distritos autónomos hoje se chama obrigatória, soma 4:347 contos.
É preciso corrigir esta classific a ção de despesa. O orçamento das despesas distritais (em todos os distritos insulares) compreende despesas obrigatórias, despesas facultativas e despesas especiais. Pensa-se, à primeira vista, que a despesa obrigatória é a que não pode deixar de ser feita pelas Juntas; mas não. No orçamento inscrevem-se sob essa rubrica as despesas feitas para desempenho das atribuições legais das Juntas, e, assim, a da construção, reparação e conservação de estradas e aquisição de material para os serviços, grande ou pequena, é sempre obrigatória. Ora não é obrigatório construir estradas; a rêde de viação aumenta-se quando o dinheiro chega. Como não é obrigatório gastar em obras 2:000 contos em vez de 200. Por isso a idea que resulta das tabelas sinópticas das finanças distritais induz em êrro quanto aos encargos e disponibilidades das Juntas Gerais.
Quanto à despesa especial, é a que se faz com abonos ao Estado, recuperáveis pelo capítulo correspondente da receita especial.
Eis agora a distribuïção do total da despesa feita em 1937 (4:000 contos), em percentagem, pelos diversos serviços
![](n14-7_clip_image001.jpg)
Os demais serviços consomem percentagens inferiores.
É fácil de ver a viciosa distribuïção da despesa. Mas o pior é que quási tudo é gasto em pessoal, e mesmo a percentagem registada nas obras públicas não corresponde a uma atribuïção de receitas próprias da Junta a êsse serviço, pois que está incluída na despesa a importância do subsídio de 362 contos concedido pelo Estado para reparar os estragos causados por uma tromba de água. Não se fizeram em 1937 nenhumas construções ou obras nova s e as reparações foram todas custeadas por êsse subsídio do Estado.
A Junta Geral já cobra o adicional de 15 por cento sôbre as contribuïções gerais.
Qual o remédio para esta situação? Há dois caminhos:
1. o O de tirar serviços improdutivos à Junta, especialmente a polícia, deixando-lhe assim margem para indispensáveis obras;
2. o O de assegurar uma comparticipação constante do Estado na resolução dos problemas distritais.
Devo observar, porém, que esta segunda solução, à primeira vista mais sedutora, oferece os inconvenientes seguintes:
a) Para comparticipar tem a Junta Geral de dispor, por sua parte, de algum dinheiro, e hoje não dispõe ;
b) O processo d a comparticipação, tal como está organizado, nã o satisfaz: é lenta a resolução dos pedidos e a concessão chega fora da oportunidade da abertura dos trabalhos, pois nestas ilhas, há um período cíclico de desemprêgo quando cessa a ocupação nos campos, e que é preciso aproveitar para as obras públicas.
Portanto: para que a comparticipação seja eficaz faz-se mester que seja rápida e oportunamente concedida e que se dê à Junta maneira de a poder pedir sem ser à força de empréstimos.
Agricultura e pecuária – Estes serviços deixaram-me má impressão: os técnicos não se interessam suficientemente, pois o agrónomo administra propriedades particulares e preside à comissão reguladora dos trigos do arquipélago e o veterinário deixou-se embaraçar na vida de província.
Todavia há muitos problemas que requeriam acção devotada e intensa: aproveitamento dos baldios, povoamento florestal, melhoramento das culturas, introdução de métodos racionais de cultivo, assistência vitivinícola, lacticínios, melhoramentos das raças leiteiras.
Fora da ilha Terceira pouco se faz. Em S. Jorge começou-se o construção de um pôsto agro-pecuário, mas o edifício lá está vazio e desaproveitado. Os técnicos raramente vão às outras ilhas.
Além da falta de dinheiro há, neste pobre distrito, falta de gente...
Obras públicas – Não há presentemente director nem outro engenheiro. Quem, a título de consultor, orienta os serviços é o director técnico da Junta Autónoma dos portos, que, como único engenheiro do d is trito, elabora projectos, os informa e dirige a sua execução.
Os quadros estão esqueléticos, mas, à falta de dinheiro, o serviço está inactivo. Os chefes de conservação são meros práticos (o de S. Jorge foi oficial de cavalaria até 1919, o da Graciosa é farmacêutico e entrou por ser adido) e na Direcção também não há ninguém capaz.
Entretanto, o distrito tem imenso para fazer. Só a Graciosa, onde quási não há desnivéis n em viação automóvel, tem estradas sofríveis; as de S. Jorge e da Terceira carecem de grande reparação, havendo a notar que nesta última ilha existem já várias carreiras de camionetas para passageiros, com o conseqüente desgaste dos pavimentos. Segundo me informaram, os técnicos avaliam em 4:000 contos o custo dessa grande reparação.
Está orçada para 1938 a despesa neste serviço em 674.926$29, mas desta quantia só 277 contos para obras (conservação e reparação), e conta-se no orçamento da receita com 212 contos de comparticipações do Estado.
Saúde pública – Tudo quanto disse a respeito da separação dos serviços de sanidade terrestre e marítima no distrito de Ponta Delgada cabe aqui dizê-lo com mais forte razão: um serviço especial marítimo para dois paquetes por mês, que chegam de portos vizinhos, de onde saíram na véspera, é mais que excessivo.
Já o decreto n.º 17:677, de 30 de Outubro de 1929, remodelou os serviços de sanidade marítima de Angra, passando a estação de saúde a 2. a classe; mas é preciso ir mais longe e adoptar a solução de um serviço de saúde único, com um só inspector, tanto mais que também aqui está vago o lugar de guarda-mor e o inspector de sanidade terrestre acumula presentemente, sem esfôrço, as funções dos dois cargos.
O estado sanitário do, distrito não é tam bom como em Ponta Delgada; a peste bubónica não desapareceu de todo, há ainda alguns casos, embora poucos, todos os anos. Tem de intensificar-se o combate ao rato e à miséria.
Existe um hospital da Misericórdia em Angra, outro em Santa Cruz da Graciosa e outro nas Velas, de S. Jorge. Só visitei êste último, instalado num velho e desconfortável convento. Recebeu um legado avultado aqui há anos com o qual o médico instalou um a boa sala de cirurgia e um serviço de radiologia.
Assistência – Como em Ponta Delgada, existe a Casa de Saúde de S. Rafael, a cargo dos irmãos de S. João de Deus, para loucos do sexo masculino, cujo internamento é pago pela Junta Geral. As loucas estão internadas num velho pardieiro, quási emparedadas.
A Irmandade de Nossa Senhora do Livramento sustenta duas casas de assistência infantil: o Asilo da Infância Desvalida, para raparigas, e o Orfanato Beato João Baptista Machado, para rapazes. A ambos falta muita cousa; mas são limpos, informados por bo m espírito e a sua própria pobreza é fiadora de que os educandos não serão deslocados do seu meio natural. Agradou-me a visita que lhes fiz. A Junta Geral dá-lhes subsídio irregularmente, conforme as suas posses, por orçamento suplementar. Vivem com muitas dificuldades e merecem auxílio.
Há em Angra uma instituição curiosa e única no País (e não sei se no mundo): a Caixa Económica de Angra do Heroísmo. Esta Caixa tem uns tantos accionistas responsáveis pelo capital, mas que de direito e de facto nada possuem no activo; os lucros de exercício são integralmente destinados às obras de beneficência do distrito. Existe desafogadamente há noventa e três anos e no ano de 1937 distribuía 97.000$, mas quando afluía mais dinheiro da América chegou a distribuir o dôbro e o triplo.
Polícia – Considero este problema um dos que mais urgentemente requerem a atenção do Governo. Em Angra do Heroísmo está (a dominar a própria cidade, no antigo castelo filipino) um depósito de deportados políticos, confiado apenas à guarda do batalhão de infantaria com sede aí. Esse batalhão está em quadros [ sic ], e os soldados que o constituem são de inferior qualidade.
Ora na cidade os deportados que por lá andaram à sôlta em grande quantidade aqui há anos fizeram perigosa sementeira de ideas, e é quási certo que existem entendimentos entre elementos locais e os presos do forte. No dia do juramento de bandeira da Legião apareceram içadas bandeiras vermelhas e foram distribuídos manifestos comunistas.
E o que é a polícia de Angra? São trinta homens recrutados antes de 1926, na maioria incapazes de serviço activo, pesados, indiferentes, sem armas. Nenhuma confiança se pode ter neste corpo.
Torna-se indispensável reformá-lo, aumentá-lo, instruí-lo e armá-lo. À custa da Junta Geral? Ela despende hoje 220.000$ com polícia e já vimos que não pode gastar mais. Mas o problema de segurança geral não há-de deixar-se dependente da auto-suficiência do distrito.
O Estado tem de chamar a si as polícias dos distritos insulares. A Junta geral de Ponta Delgada poderia ficar a receber, a título de compensação, uma importância anual equivalente ao que hoje a polícia lhe custa. Nos outros distritos a verba disponível ficaria para o fomento, que hoje não lhes é possível.
Instrução – Há em Angra um liceu nacional instalado no antigo seminário, que, sem obedecer a todas as exigências modernas, satisfaz todavia perfeitamente para a pequena frequência que tem. Apenas precisa de um gimnásio e de um campo de jogos.
Para instalar a Escola Comercial e Industrial Madeira Pinto adquiriu o Estado recentemente um antigo palacete por concluir. Dado o preço, foi boa compra. Ao presente o ensino da Escola deixa a desejar, muito que se adapte há-de ser sempre uma escola deficiente. Ao presente o ensino da escola deixa a desejar, muito livresco e de mau teor. No novo palacete preparam-se algumas salas para instalar oficinas, mas creio que uma escola de artes e ofícios deve ter outro ambiente. O problema do ensino técnico profissional não está resolvido nas ilhas.
Pelo que respeita ao ensino primário, a situação pode considerar-se satisfatória: o distrito é dos que apresentam menor percentagem de analfabetos no País.
Conclusões – Do que fica exposto podem tirar-se as seguintes conclusões:
1. o Faltam administradores e técnicos no distrito de Angra;
2. o As receitas não chegam para dotar os serviços postos a cargo da Junta Geral e são absorvidas sobretudo pelos quadros dependentes do Estado;
3. o É necessário que o Estado chame a si a polícia;
4. o Com o que fica à Junta, desde que a polícia passe para o Estado, pode encarar-se a hipótese de uma comparticipação regular nas obras públicas urgentes e sua conservação.
III - Distrito da Horta
Regime administrativo – Este distrito não pediu a aplicação do regime de autonomia e por isso esteve até aqui na situação dos distritos continentais. A sua Junta Geral foi, até há anos, um corpo apagado, mas veio a caber-lhe uma parte na percentagem para o Estado do rendimento dos cabos submarinos que amarram na Horta (à volta de 100 contos anuais), e, como por lapso tivesse deixado de o receber durante alguns anos, foi-lhe entregue pela Câmara, que indevidamente a cobrara, em três ou quatro prestações anuais. Nos últimos anos, pois, tem a Junta Geral disposto de um milhar de contos, gasto em hospitalização de alienados na Casa de S. Rafael de Angra, subsídios às câmaras para partidos médicos, subsídios a estabelecimentos particulares de assistência, auxílio ao liceu, bôlsas a estudantes pobres, campo agrícola experimental, viveiro florestal, distribuição de plantas e sementes, cobridores e subsídios para viação municipal. A maior parte destas despesas excedia as suas atribuições.
A Junta, até há um ano, não tinha funcionalismo. O secretário e o tesoureiro faziam o serviço gratuitamente ou mediante insignificantes gratificações. Agora, dado o desenvolvimento que o expediente tomou, deliberou contratar um oficial de secretaria, antigo e activo membro de uma comissão executiva, e um contínuo. A sua contabilidade era rudimentar, os serviços pode dizer-se que vão ser montados de novo.
Situação económica – O distrito é constituído por quatro ilhas, formando dois grupos bem distintos: Pico e Faial, Flores e Corvo.
O Pico e o Faial são territórios complementares. Separadas por um canal que se atravessa, com bom tempo e de «gasolina», em três quartos de hora, mantêm relações íntimas, havendo carreiras consecutivas de barcos.
A ilha do Pico é laboriosa e rica, a sua gente, faz lembrar na tenacidade e na iniciativa a de S. Miguel. Cultiva a terra, colhe vinho, produz lacticínios e pesca a baleia – principal riqueza local. São os habitantes do Pico os consumidores do Faial: vêm de manhã à Horta fazer as suas transacções e à uma hora da tarde o comércio da cidade morre, porque a gente do Pico voltou para a sua ilha.
De resto a economia do Faial é dominada pelo Pico: a própria terra está nas mãos dos picoenses.
O Faial é uma pequena ilha. A agricultura e a indústria que possue são pouco ao pé do comércio: vive sobretudo das comunicações – cabos submarinos, estações radiotelegráficas, escala de navios e de aviões com o correspondente fornecimento de víveres e comb us tível –, que fornecem considerável contingente estrangeiro para a população, e do comércio com o Pico e as ilhas de oeste, além, já se vê, das remessas dos emigrantes.
Faial e Pico formam união fiscal: têm a mesma pauta de impostos indirectos e a circulação dos produtos entre elas é livre.
O terramoto da cidade da Horta em 1926 foi um factor de perturbação da economia local: não tanto pela destruïção de riquezas que causou, como pelo mau emprêgo dos socorros que afluíram e pela erradíssima orientação de quem superintendeu nas obras de reconstrução.
Arruinada em grande parte a cidade, não houve o elementar cuidado de levantar uma planta (que ainda hoje não existe) e de marcar as casas atingidas e o grau em que o tinham sido; não se procurou rectificar e melhorar o traçado das ruas, rasgar horizontes para uma cidade nova, corrigir vícios de orientação, fazer urbanismo, nada disso! A reconstrução ao Deus dará, e hoje, dez anos passados, a Horta continua a ser a cidade sinistrada, em parte o antigo restaurado, em parte as ruínas às escâncaras, e os bairros de madeira provisòriamente erguidos para abrigo das famílias persistem, transformados em quarteirões definitivos, onde falta higiene e segurança, e tudo. Há um problema de habitação operária quási aflitivo, mas na terra pensa-se, antes de mais nada, e a instâncias prementes da respectiva Administração Geral, em expropriar uma casa da praça principal para oferecer terreno onde se construa o Palácio do Correios: para tanto contribuem Junta Geral e Câmara. O tino administrativo dos portugueses é assim...
Além disso houve, depois do terramoto, a especulação com os géneros alimentícios e os materiais de construção, o abuso dos créditos aos sinistrados, concedidos sem garantias e aproveitados sem fiscalização, e ficou, até hoje, o problema da recuperação pelo Estado do dinheiro que tam prodigamente se dissipou.
Assim, ao tremor de terra seguiu-se um abalo moral, que ainda se repercutiu em conhecidas crises da banca local.
O outro grupo do distrito é o constituído pelas ilhas das Flores e do Corvo, que constituem também uma só circunscrição fiscal para o efeito de lançamento e cobrança dos impostos indirectos municipais.
A ilha das Flores não chega a ter 4:000 habitantes que vivem da agricultura e dos lacticínios. Te m duas vilas sede de concelho, com comunicações fáceis apenas por mar; a estrada interior é um caminho de carro, que o mau tempo torna intransitável. Compreende-se por isso que na ilha não haja automóveis. É servida por uma visita mensal de algumas horas de um dos paquetes da Insulana.
A ilha do Corvo tema uma povoação única, sede do concelho, a Vila do Corvo, com 701 habitantes, que cultivam a terra, exportam queijo, manteiga, gado... e gente. Também o navio só lá vai uma vez por mês, no bom tempo; de inverno a ilha não tem comunicações marítimas com o continente.
Muito se tem escrito sobre a vida primitiva do Corvo, a simplicidade e ingenuidade dos corvinos. A vila é uma aldeia como qualquer das nossas aldeias serranas, e a gente talvez seja um pouco mais polida e culta (efeito da emigração) que os lapuzes do continente. Quando lá estive reinava grande agitação devid o à substituição da comissão administrativa da Câmara, interessando-se no assunto todas as organizações cívicas possíveis, que a insensatez das gentes tem introduzido ali, desde a União Nacional ate à Legião Portuguesa, pois de tudo lá existe para escarmento do povo. E na ilha do Corvo, divididos os corvinos em dois partidos, uns aos outros se lançavam o apôdo de bolchevistas etc.
Num meio assim, pequeno, rude, fechado, sem escol, tudo indica uma concentração máxima de serviços e autoridade, até porque, a multiplicá-los num arremêdo dos concelhos a sério, acaba o funcionalismo por absorver a receita local toda e excedê-la ainda. Não vou até ao extremo de propor uma única repartição em que se reunisse tudo, fisco, tribunal, registo civil, delegação marítima, etc., tendo à testa uma espécie de «capitão de navio ancorado no oceano», como os americanos adoptam para os seus ilhéus povoados da costa: a ousadia da innovação decerto levantaria hesitações. Mas que o regime administrativo seja o mais simples e concentrado possível.
Organização da autonomia distrital – Como o distrito da Horta não era autónomo, o problema principal a resolver com a minha visita consistia em lhe aplicar o regime da lei n.º 1:967, doseando as atribuições da Junta Geral de harmonia com as suas possibilidades financeiras.
As receitas que vão passar para a Junta são, calculado o seu rendimento pelo de 1937:
![](n14-7_clip_image001_0000.jpg)
Custo de alguns serviços que deveriam transitar para a Junta Geral, conforme a conta dos pagamentos efectuados em 1937 na Agência do Banco de Portugal na Horta:
.....................................................Contos |
![](n14-7_clip_image002.jpg) |
Há ainda a considerar o Liceu provincial Manuel de Arriaga, que custa 200 contos e tem de rendimento uns 70 contos.
Quanto aos serviços de obras públicas, não se pode pensar em transferi-los para a Junta, pois que só êles em 1937 importaram em 1:900 contos (incluídos 900 gastos por conta da Junta Autónoma de Estradas).
Ora o distrito esteve longo tempo abandonado; é preciso reconstruir quási todas as estradas, acabar outras, construir algumas, fazer portos, cais e paredões de defesa das povoações marítimas (a começar pela cidade da Horta, que o mar está a minar, a ponto de ter derrocado um bairro quási completo), emfim, uma vasta tarefa a dividir por quatro ilhas e a que nem se pode pensar em ocorrer com as receitas do distrito autónomo.
Já a propósito de Angra disse qual o meu modo de ver a respeito das despesas com polícia cívica. A polícia interessa à segurança geral; não é pois serviço que se deixe ao sabor das possibilidades locais. Aqui na Horta tem de se escolher: ou transferir para a Junta a polícia ou o liceu. Voto por que fique a polícia a cargo do Estado, como até aqui, e se descentralize o liceu provincial.
Teremos então a cargo da Junta, e pela nova organização proposta:
............Contos |
![](n14-7_clip_image003.jpg) |
Para uma receita de 1:900 contos impõe-se à Junta a despesa de 1:847 contos; a diferença é para subsídios à assistência privada e desenvolvimento de serviços. Parece ser esta a melhor forma de resolver o problema.
A Escola Agrícola Móvel Matos Souto – Actualmente os serviços agrários d o distrito da Horta estão a cargo da Escola Agrícola Móvel Matos Souto, cuja história revela um dos mais espantosos bluffs da administração pública portuguesa.
Em 1 9 08 faleceu no Rio de Janeiro Manuel Matos de Sousa e Souto, que deixou testamento, de onde constava a seguinte deixa:
«De uma quinta parte, meu testamenteiro remeterá para a ilha do Pico para instituição, património ou manutenção de uma escola na freguesia do meu nascimento.»
De facto, veio a ser entregue o legado, na importância de 105 contos insulanos, ou 84 contos fortes, à Junta de Freguesia da Piedade, do concelho das Lajes do Pico, que, em sessão de 21 de Novembro de 1909, deliberou criar uma escola de agricultura denominada Matos Souto.
Adquiriu-se uma granja, construiu-se nela um vasto edifício, tudo em lugar ermo e sem comunicações, e passou depois a escola para o Ministério do Fomento, por não poder a Junta sustentá-la, tendo o decreto de 17 de Maio de 1913 organizado a Escola Profissional de Policultura e Viticultura Matos Souto, ao depois transformada em escola móvel agrícola.
Pois bem: até hoje nem um só aluno passou por esta escola, regularmente dotada e tomada a sério nos orçamentos do Estado. Há trinta anos que foi instituída, há vinte cinco que está instalada e regulamentada e nunca ninguém lá ensinou nem aprendeu. Sucessivos directores são nomeados, to m am posse, visitam a escola e voltam para a Horta a ocupar-se dos labores burocráticos dos serviços agronómicos distritais.
Creio que é tempo de acabar com isto. Proponho a transferência da escola para a Junta Geral; a autorizaçã o para alienação da quinta e casa do Pico, pois se encontram em local contra-indicado para o fim visado, e a sua transferência para o Faial, possível à luz da doutrina e da lei, visto estar verificada a impossibilidade da realização da vontade do fundador emquanto a escola permanecer na Piedade, do Pico.
Instrução pública – Como se viu, as despesas com instrução primária absorvem a maior parte das receitas que do Estado transitam para a Junta Geral. O distrito da Horta é, nas estatísticas, o que apresenta menor percentagem de analfabetos: os próprios corvinos sabem quási todos, senão todos, ler e escrever. A razão disto parece estar na emigração para a América, intensíssima destas ilhas, ainda mais que das outras.
Existem 130 escolas, com 145 lugares, frequëntadas por 4:998 alunos, numa população de cêrca de 50:000 habitantes. Mas a maior parte dessas escolas estão instaladas em casas alugadas; os edifícios escolares existentes estão mal conservados, exceptuando os da cidade, que foram construídos depois do terramoto, e por sinal custaram caríssimos, ao que me informaram; falta-lhes mobiliário e material didáctico, e as câmaras muito pobres quási todas, e com exce p ção da do conselho da Horta, não pagam as despesas de expediente e limpeza aos professores.
Por emquanto foi criado apenas um pôsto de ensino em Santa Cruz das Flores; é conveniente transformar bastantes lugares de professor em postos. E seria para desejar também que, aceitando a sugestão do director escolar do distrito, nas escolas de mais de 45 alunos houvesse, em vez de dois lugares, o professor e um regente adjunto, que assim poderia praticar antes de dirigir um pôsto de ensino isolado.
Conclusões:
1. o A autonomia do distrito da Horta deve ficar restrita ao fomento agrícola, florestal e pecuário, saúde, assistência e educação;
2. o Não convém impor à Junta Geral do novo distrito autónomo grandes encargos com pessoal burocrático, que até há pouco dispensou absolutamente.
IV - Distrito do Funchal
Regime administrativo – O regime autonómico só foi aplicado ao distrito do Funchal por decreto de 8 de Agosto de 1901. Debalde procurei elucidar-me sôbre a história da autonomia madeirense; pouco consegui apurar, e êsse pouco reflectia uma impressão de desgovêrno e incúria, de que se salva a gerência do Visconde da Ribeira Brava.
O escol madeirense só agora começa a revelar alguns dirigentes dignos dêsse nome. Até aqui a política local era de puro estilo antigo, feita para consolidar influências à custa dos favores pessoais. Não se orientava o povo, não se procurava educar essa massa inculta e rude, não se remava contra a maré das opiniões falsas e dos juízos erróneos; os caciques deixavam-se levar na torrente e arvoravam-se em procuradores de todos os descontentamentos junto do Poder Central.
A administração distrital na Madeira começa agora a seguir por outro caminho. Há cinco ou seis homens (não muito mais) de espírito novo, com novos processos. Mas falta gente, falta quem coopere nos municípios, faltam bons chefes de serviços, faltam bons funcionários, o clima é amolecedor, a vida no Funchal é aliciadora. O turismo impele para uma existência artificial, e por tudo isto não se pode ainda olhar com confiança inteira o futuro do distrito autónomo.
Não quero, todavia, condenar o sistema de administração, porque observei também muitas vezes nas ilhas que os serviços não descentralizados estão longe, em geral, de ser melhores que os outros.
Situação económica – Não m e alongarei nesse ponto, porque as condições económicas da Madeira são de so bejo conhecidas do Govêrno. Observarei apenas que me parece por fazer, e bem digna de ser encetada na Madeira, uma obra de valorização do seu pobre e néscio povo. A maior parte dos males do distrito vem dessa inferioridade qualitativa, em desacôrdo com o ritmo de vida que a actividade comercial e industrial e o turismo imprimem à ilha. Impunha-se que os serviços sanitários e os serviços agronómicos e pecuários fizessem verdadeiras missões, primeiro de estudo, depois de ensino e persuasão. Torna-se necessário que, além das obras públicas, se cuide de espalhar pela ilha dispensários e centros de saúde (fora do Funchal há um único hospital e êsse com três camas), creches, postos de ensino prático agrícola, postos zootécnicos. Até aqui as élites (incluindo os funcionários técnicos e clero) têm pensado mais em si e nos seus interêsses do que nas 250:000 almas que lhes estão confiadas.
Devo consagrar uma palavra de louvor à acção dos organismos corporativos e de coordenação económica: Grémio de Exportadores de Bordados, Grémio de Exportadores de Frutas, Junta Nacional de Frutas e, em especial, a Junta dos Lacticínios, que está a trabalhar excelentemente, sob a orientação inteligente d o agrónomo Pedro Baptista, que tive ocasião de admirar.
Situação financeira – Presentemente as receitas distritais cobrem as despesas, mas os encargos da dívida atingem 1:320 contos anuais num orçamento de 13:000 contos – exactamente 10 por cento.
Há diversas obras públicas de primeira importância que a Junta não pode fazer pelas fôrças do seu orçamento. Recentemente o Estado resolveu comparticipar com a Junta na obra de conclusão da rêde de viação e empedramento das estradas, mas para que a Junta pudesse concorrer com a sua parte nos primeiros anos houve que conceder-lhe um empréstimo. Depois de decorridos êsses primeiros anos naturalmente terá de se lhe fazer... outro empréstimo, a menos que se abram perspectivas novas à s suas finanças, tirando-lhe parte dos encargos com a polícia, conforme adiante preconizo.
Em 1937 gastou a Junta em construções e obras novas 1:186 contos, mas nesta quantia estão incluídas meras operações de tesouraria, como sejam a restituição das percentagens retidas para garantia de empreitadas e as importâncias das comparticipações do Estado. Se deduzirmos estas quantias, que somam 317 contos, temos que o dispêndio em obras novas pròpriamente do distrito foi de 869 contos.
Em obras de conservação e aproveitamento gastou 892 contos, o que totaliza para obras públicas 1:761 contos, ou seja apenas 13 por cento do total da despesa, muito menos que no distrito de Ponta Delgada, que tem um orçamento aproximadamente de metade do do Funchal.
O grande dispêndio faz-se com pessoal: as remunerações certas e acidentais somaram 5:360 contos, números redondos, ou seja 41 por cento da despesa total.
Deve notar-se que, realmente, a extensão e densidade populacional do distrito exigem muito mais pessoal que nos Açôres e que a recente reforma dos vencimentos do funcionalismo público agravou a despesa.
Depois, o custo da vida e a representação no Funchal obrigam a pagar melhor que noutros distritos, e por isso, emquanto propomos nos distritos açoreanos para os funcionários técnicos o vencimento-base de 3. a classe, aqui somos forçados a propor o de 2. a classe.
Agricultura e pecuária – É indispensável estudar metodicamente as condições agrícolas, silvícolas e pecuárias da Madeira. Para isso não se pode contar com os técnicos locais: a) porque a multiplicidade das obrigações burocráticas o s impede dêsse trabalho; b) porque é sabido que raramente as pessoas em contacto permanente com os problemas têm dêles a necessária visão de conjunto.
Por isso parece-me que deve prosseguir-se na orientação de enviar missões especiais de técnicos às ilhas para estudo de problemas concretos, e seria para desejar a instituïção de inspecções regulares aos serviços técnicos distritais.
Nesta ordem de ideas, desaconselhei a Junta a que persistisse no propósito de criar os lugares de silvicultor e arquitecto, antes devendo confiar o expediente dêsses serviços a funcionários menos categorizados, chamando para os estudos e orientação geral técnicos de fora, por contrato passageiro.
Proponho, quanto aos serviços agrícolas, a extinção da comissão de vinicultura, hoje reduzida a fazer estatística., a integração das suas funções na delegação da Inspecção Geral das Indústrias e Comércio Agrícolas. Esta delegação actualmente é colegial; mas de facto é o agrónomo, como secretário, quem tudo faz. Acho preferível que passe a ser singular, isto é, representada por um delegado apenas.
Não há na Madeira uma estação ou simples pôsto zootécnico, falta que me parece importante.
A Junta Geral tomou uma iniciativa interessante: a de constituir um Conselho Técnico de Agricultura da Madeira, organismo de coordenação com carácter informativo e consultivo, do qual fazem parte o director da estação agrária, o intendente de pecuária, o regente florestal, o presidente da Junta dos Lacticínios e o delegado da Junta Nacional de Frutas. Este Conselho está a trabalhar e parece que satisfatòriamente.
Obras públicas – A Direcção das Obras Públicas da Madeira está na perspectiva de durante treze anos se consagrar exclusivamente a estradas e edifícios, a fim de cumprir o disposto no decreto lei n.º 28:592.
Por isso propomos que os serviços industriais e eléctricos (que aliás têm muito desenvolvimento neste distrito) sejam dela desanexados, para, juntamente com os de viação, formarem uma nova Direcção. Notar-se-á que presentemente já de facto assim sucede, pois que o engenheiro chefe da secção dos serviço s industriais e eléctricos é também o chefe interino da circunscrição de viação.
Quanto aos serviços hidráulicos, têm, como se sabe, importância capital no distrito: está-lhes entregue a administração das levadas do Estado e a assistência técnica às comissões de heréus, que bem carecidos dela são.
A Junta Geral desejaria que estes serviços também fôssem entregues a uma entidade especializada, Junta ou Direcção da Hidráulica Agrícola da Madeira.
Parece-me porém que o mesmo objectivo se pode conseguir com a simples criação de uma secção de hidráulica na Direcção das Obras Públicas, sem necessidade de mais chefes de serviço e mais pessoal de carteira. Depois de iniciada com intensidade essa assistência técnica se verá a amplitude a dar-lhe nos quadros dos serviços distritais.
Saúde pública – Embora o pôrto do Funchal tenha movimento incomparável ao dos outros portos insulares, parece-me que lhe convém a mesma organização proposta para os Açôres, apenas com a criação de um lugar de inspector de saúde adjunto, em que será provido o actual guarda-mor.
Note-se que ao presente há no Funchal um inspector de sanidade marítima (vago o lugar por aposentação) e um guarda-mor, além do inspector de sanidade terrestre. É gente de mais.
Os serviços de sanidade marítima dispõem de um magnífico lazareto e pôsto de desinfecção, que tiveram sua utilidade, mas que hoje representam uma impressionante imobilização de capital e de... pessoal.
O lazareto é aproveitado, de há vinte anos para cá, como prisão política, e nessa função consumiu grande parte do seu material hospitalar. E todavia o único hospital madeirense em actividade está pletórico, e recolhe doentes com moléstias infecciosas, sobretudo tifosos, que deveriam ser tratados num hospital de isolamento. Deve pois o lazareto ser, sem demora, aplicado a êsse fim.
Em parte do grupo de edifícios destinados a lavandaria, pôsto de desinfecção, depósitos e armazéns (são uns cinco, além do lazareto) estão hoje instalados o Asilo de Mendicidade, criado e sustentado pela polícia, e um asilo de rapazes dos padres salesianos (?); tudo isto por cedência precária e a título provisório. Impõe-se que seja resolvido de(fi)nitivamente e com critério o destino a dar a êste conjunt o de edifícios. O presidente da Junta pretende fazer reverter parte dêles à sua função sanitária, pondo a funcionar o indispensável pôsto de desinfecção pública, com lavandaria e balneários anexos, e, que se me afigura não só digno de aprovação como de urgente realização.
Os serviços sanitários do Funchal chegaram a ser apreciáveis no tempo da luta antiepidémica; hoje existem pouco mais que no papel.
E todavia a raça laboriosa e resistente da Madeira é constantemente desgastada pela doença, pela miséria, pela impropriedade da habitação, pelo alcool, pela sífilis, pela tuberculose... O espectáculo da Casa de Saúde do Trapiche, onde os irmãos de S. João de Deus cuidam dos loucos do sexo masculino, é, sob êste aspecto, elucidativo; as formas de loucura são muito mais graves e variadas que nos Açôres, a percentagem de loucos bastante maior, e não estão lá todos. Grassa, por virtude do uso da água inquinada das levadas, a febre tifóide; em algumas regiões existe o ancilostoma, por falta de latrinas, e toda uma povoação e flagelada pelo sarcoma ocular.
Todavia, para as duas ilhas, da Madeira e Pôrto Santo, há um hospital único – o da Misericórdia do Funchal, hoje no edifício dos Marmeleiros. Não há, fora do Funchal, dispensários ou centros de saúde ou postos de cirurgia de urgência e de puericultura nem assistência hospitalar das Misericórdias (salvo num concelho, mas deficientíssima); e de Pôrto Santo ao Funchal são cinco horas de mar mexido, e Pôrto Moniz e Santana não têm estradas que os liguem à sede do distrito!
Urge, pois, que os serviços de saúde comecem a atentar na assistência sanitária rural, tanto mais que o hospital do Funchal não poderá, dentro em pouco, albergar mais doentes nem sustentá-los. Para êsse efeito proponho, de acôrdo com o inspector de saúde, a criação de visitadoras sanitárias, hoje elementos indispensáveis em toda a acção educativa do campo da higiene e profilaxia.
Assistência – Já acima falei da Casa de Saúde do Trapiche, completada por outra para mulheres, a cargo também de uma ordem religiosa. Com hospitalização a alienados gastou a Junta, em 1937, 840 contos, verba que vai em aumento e que representa 7 por cento da despesa total!
Mantém ainda a Junta o Asilo dos Velhinhos, para os dois sexos, servido por irmãs da Ordem Funchalense das Hospitaleiras Portuguesas e que fica realmente barato – 156 contos anuais; e distribue uma sopa dos pobres, onde gastou, em 1937, 260 contos.
Em subsídios a casas de caridade e à assistência privada distribuiu no mesmo ano 286 contos, mas ainda há a juntar a esta verba algumas outras escrituradas no capítulo de «Subsídios» e não no da «Assistência» e que devem somar uns 100 contos.
Aqui no Funchal, como nos Açôres (com excepção de Angra), a Junta Geral é a grande contribuinte da assistência privada, como se vê.
Só na Horta, porém, encontrei um plano de coordenação da assistência. Nos outros distritos autónomos nota-se grande dispersão de esforços, particularismo, falta de colaboração, sobretudo sensível no Funchal, onde talvez não fôsse difícil disciplinar um pouco a beneficência. E há lugar também a preguntar se não seria mais bem empregado o dinheiro na obra de assistência sanitária que preconizo.
Polícia – O problema da polícia na Madeira é, como acima disse, particularmente melindroso e põe-se assim: considerável taxa de criminalidade, povo pouco educado e de tendências rebeldes, à mercê de agitadores, pôrto muito movimentado, muita freqüência de estrangeiros, necessidade de fiscalização da viação e do turismo e de polícia rural.
A actual organização, indiferenciada, da polícia distrital não pode satisfazer de modo nenhum. No distrito do Funchal é absolutamente necessário, a meu ver: separar a polícia administrativa e de segurança pública das restantes; dar autonomia a uma secção de investigação criminal, com director e agentes próprios; criar uma delegação especial da polícia de vigilância e defesa social, em que se integre a actual delegação dos serviços de emigração; organizar a polícia rural, sob a forma de postos municipais com comando central próprio, devendo o comandante rondar constantemente esses postos.
A Junta Geral não pode suportar êste desenvolvimento de serviços com o inevitável aumento de efectivos e seu armamento e apetrechamento. Por outro lado precisa de dispor de verbas para construção do novo liceu, funcionamento do Hospital de isolamento e comparticipações com o Estado.
Podia, pois, fazer-se uma divisão de encargos: ficariam para a Junta a polícia de investigação criminal e a polícia rural, ambas de interêsse local e carácter cívico; passariam para o Estado a polícia de segurança (incluindo a administrativa) e a de vigilância e defesa social (incluindo a internacional), ambas de interêsse geral.
Conclusões:
1. o O distrito do Funchal suporta, em tese, a autonomia, mas a sua grande carência é de escol dirigente;
2. o O problema mais vivo da Madeira é o da valorização do povo e do seu trabalho;
3. o Há ainda sectores da administração, como a saúde e a assistência, em que há a fazer uma remodelação profunda;
4. o Parte dos encargos com a polícia devem reverter para o Estado.
V - Considerações finais
Para terminar, registarei ainda as minhas observações sôbre dois pontos que reputo de grande importância: as relações entre os técnicos e as Juntas Gerais Autónomas e a necessidade de inspecções administrativas.
Relações entre as Juntas Gerais e os seus técnicos – Reparei que nos distritos onde já existia a autonomia lavrava uma secreta hostilidade entre os serviços técnicos e as Juntas Gerais de que dependem, e isso mesmo quando os chefes de serviço e os vogais da Junta mantinham entre si as mais amistosas relações pessoais.
Conversei com todos os chefes de serviço e procurei averiguar da razão dêsse atrito. Em geral queixavam-se de excessiva intr om issão das Juntas nas suas atribuições, da instabilidade da orientação administrativa, por vezes impeditiva de uma acção profícua, e da deficiência de dotações orçamentais.
O desejo dos técnicos, em geral, era o de ficarem dependentes dos Ministérios, corresponderem-se com êles, receberem ordens dêles, combinarem com êles a acção a executar e, no fim, apresentar a conta às Juntas G erais com a autoridade do apoio governamental.
Examinando os queixumes, verifica-se que da insuficiência de dotações orçamentais se queixaram, queixam e hão-de queixar sempre todos os chefes de serviço, no continente, nas ilhas e nas colónias. Cada dirigente de um departamento pensa que os assunto s a seu cargo são os mais importantes e traça um largo plano de acção, desenvolvido à fôrça de generosas despesas; mas quem administra e tem a visão de conjunto é forçado sempre a reduzir a proporções mais modestas tam audaciosos projectos.
Não pode deixar de decidir da orientação dos serviços a entidade que os custeia, sob pena de se tornar uma pagadoria irresponsável. Combinar o agrónomo de Ponta Delgada com o Ministério da Agricultura a acção a desenvolver e apresentar a conta à Junta Geral seria muito cómodo, mas incontestavelmente injusto e errado.
A razão do atrito deve ser outra: deve estar em que a autoridade local é muito mais incómoda para os subordinados do que a autoridade longínqua da capital. A Junta sabe o que se faz e o que se não faz, entra nas repartições, fiscaliza, importuna, aflige o técnico; ao passo que o Ministério, distante, só daria notícias de si de quinze em quinze dias e deixaria ao chefe do serviço liberdade de movimentos.
Num ponto, porém, assiste razão aos técnicos: na sua queixa contra a instabilidade de orientação administrativa. O regime de comissões nomeadas em que têm estado os distritos autónomos provoca a mudança frequënte dos dirigentes e a constante modificação de critérios. Hoje vem um vogal que acha importantíssima a arborização, daqui a um ano vem outro que entende muito mais urgente a pecuária, para seis meses depois aparecer um terceiro a querer concentrar os esforços todos nas culturas arvenses... Tive ocasião de verificar numerosos casos dêste género.
Como obviar a esta dificuldade, conciliando a conveniência da orientação pela Junta, com a necessidade de estabilidade dessa orientação?
A solução que proponho é a do plano trienal aprovado pela Presidência do Conselho e só modificável com igual assentimento. Os técnicos a quem a apresentei acolheram-na bem e os presidentes das Juntas Gerais também.
Necessidade de inspecção administrativa – Se há alguma certeza que eu tenha adquirido n o decorrer dos estudos sôbre a organização administrativa do País, a que nos últimos anos me tenho dedicado, é a da necessidade imperiosa e urgente da instituição de uma inspecção administrativa.
É certo que já existe uma excelente fiscalização à contabilidade e tesouraria, a cargo da Inspecção Geral de Finanças, mas a inspecção administrativa é cousa bem diferente, a exercer por outras pessoas e com processos diversos.
O inspector administrativo cura especialmente da gestão dos interêsses autárquicos e da aplicação das leis. Chega, informa-se directamente da marcha dos diversos serviços, do desempenho das atribuições legais, do critério e do tino com que são empregadas as receitas públicas, da forma como são atendidos os interêsses gerais, do entendimento e do respeito das leis.
Orienta os administradores, sugere medidas, uniformiza práticas, esclarece dúvidas, anima iniciativas, desperta energias, corrige defeitos, repara injustiças, ensina os funcionários, vê o que pode, ouve o que dizem, regista, estuda e informa.
É extraordinário que, tendo nós durante séculos possuído esta magistratura – dos corregedores – na nossa administração local, a tenhamos deixado desaparecer e a não restauremos.
E, todavia, repito que me parece indispensável. Não temos gente no País que saiba administrar, mas encontra-se muito quem esteja animado de boa vontade e desejo de aprender. É preciso ensinar, estimular essas boas vontades e orientá-las segundo certas normas uniformes e sensatas, não as deixar desfalecer no isolamento e no desinterêsse que a correspondência sêca, ronceira e quantas vezes incompreensiva das repartições centrais quási inevitàvelmente provoca.
Por outro lado, não se pode deixar a administração local ao sabor dos caprichos das pessoas investidas na direcção das autarquias. A falta de fiscalização pelas minorias nos cor p os administrativos ou pelas oposições políticas não foi ainda suprida eficazmente de outra maneira. Nem todas as irregularidades, vexames, violências e erros de administração se exprimem nas contas: apesar da vigilância assídua de Inspecção Geral de Finanças, muita cousa há que passa em claro, porque seria do domínio da inspecção administrativa.
De nada valerá fazerem-se novas leis se elas não forem vivificadas na acção – levadas pela palavra e pelo exemplo até ao(s) executores.
Penso, de resto, que em toda a administração local activa, mesmo a dependente do Estado, se deve cada vez mais substituir o grande número de agentes superiores fixos nas circunscrições por missões volantes que orientem e estimulem constantemente os outros, que podem então ser meros subalternos, componentes da rêde fixa. O funcionário técnico estabelecido breve dessora, afundado na burocracia e apoderado do torpor provinciano.
Nesta viagem que fiz às ilhas (e embora sempre acentuasse que não ia em inspecção) tive ocasião de ver a vantagem que haveria nas inspecções assíduas: pelo interêsse com que se me pedia conselho, pelo prazer com que me eram mostradas as realizações e pela boa vontade revelada em suprir as deficiências. E quantas verdades comezinhas andavam esquecidas! E quanta desorientação, às vezes provocada pelas próprias repartições centrais do Estado!
Muitas outras observações poderia ainda aqui registar. Mas reputo-as de menor interêsse e temo to rn ar fastidioso êste já longo relatório.
Terminarei, pois, registando a alegria e o reconhecimento com que em todos os distritos, mas especialmente nos Açôres, foi acolhida a iniciativa do Govêrno ao mandar alguém estudar no local as circunstancias particulares que aconselham remédio legislativo adequado.
Os ilhéus têm, como todos os portugueses separados do continente, a psicologia do isolamento. A primeira explicação que encontram para toda a demora na resolução dos seus casos é o desprêzo do Govêrno. A minha ida foi, para êles, uma prova de atenção, que lhes mereceu elogio e gratidão.
Fui pessoalmente distinguido com inexcedíveis provas de carinho que me renderam; elas dirigiam-se, porém, ao emissário do Govêrno do Estado Novo, e por isso aqui lhes faço referência, para não perderem a sua integral significação.
A impressão que o percurso de oito ilhas açoreanas e das duas do arquipélago madeirense me deixou foi a de que são fáceis de governar – quando as governem.
A V. Ex. a, Sr. Ministro, agradeço a confiança que em mim o Govêrno quis depositar ao confiar-me esta missão; não me desempenhei dela, certamente, como era mester, mas fiz tudo o que pude para cumprir o meu dever.
A bem da Nação.
Lisboa, 22 de Setembro de 19138 – Marcelo Caetano
Nota dos trabalhos realizados pela Junta Geral do distrito de Ponta Delgada desde o seu inicio até 30 de Junho de 1938
Edifícios:
Farol da Ferraria.
Edifício dos laboratórios.
Dois pavilhões da Junta Geral.
Ampliação do edifício do Govêrno Civil (incluindo a sala da Legião e polícia).
Conclusão e ampliação do edifício da Biblioteca.
Nitreira de S. Gonçalo.
Instalações do pôsto zootécnico.
Escola infantil.
Aquisição do edifício da Escola do Magistério Primário, sua adaptação e ampliação.
Aquisição do edifício do Liceu, sua adaptação e ampliação.
Aquisição de um edifício para a Escola Industrial.
Aquisição, restauração do antigo Convento de Santo André e adaptação a museu.
Construção de um pôsto de desinfecção.
Construção do hospital de isolamento.
Construção de um hospício de alienados (no Egipto).
Adaptação de dependências do Hospital da Santa Casa para alienadas.
Conclusão e ampliação do edifício da Biblioteca.
Melhoramentos no estabelecimento termal das Furnas.
Ampliação do Balneário de Águas Carlos Fragoso, nas Furnas.
Portos de mar:
Cais do Tagarete (reconstrução e ampliação).
Muralha, rampa de varagem, estabilização da rocha no pôrto das Capelas.
Muralha e rampa de varagem no pôrto Formoso (reconstrução).
Muralha e rampa de varagem no pôrto de Rabo de Peixe.
Muralha e rampa de varagem no pôrto da Lagoa.
Muralha e rampa de varagem no pôrto da Caloura.
Muralha e rampa de varagem no pôrto da Maia.
Muralha e rampa de varagem no pôrto da Ribeira Quente.
Muralha e rampa de voragem no pôrto dos Mosteiro s.
Muralha e rampa de viragem no pôrto da Bretanha.
Muralha e rampa de varagem no pôrto de S. Lourenço (Santa Maria).
Construção da rampa de varagem no pôrto dos Fenais da Ajuda.
Continuação da construção do cais de S. Lourenço (incompleto).
Conservação e reparação de todas as rampas de viragens.
Farolins:
Farolim especial nas Capelas.
Farolins em todos os portos e iluminação do local de varagem daqueles onde existe luz eléctrica.
Obras em ribeiras e lagoas:
Esgôto das águas da Lagoa das Furnas por meio de canalização de ferro fundido.
Esgôto das águas da Lagoa das Sete Cidades por meio de um canal, em túnel, com 1:200 metros de comprimento.
Conclusão da barrage m do Salto do Fojo, nas Furnas, para desvio parcial das águas torrenciais.
Desassoreamentos na Ribeira das Furnas.
Regularização do leito da Ribeira de Além, na Povoação.
Estradas:
Foram construídos cêrca de 190 quilómetros de estradas e respectivas pontes, que regulam, a partir de 1926, uma por quilómetro. Antes da Junta Geral tinham sido construídos pelo Estado 122 quilómetros. Naqueles 190 quilómetros estão incluídos os seguintes, troços:
Estrada nacional n.º 8 – das Feteiras aos Mosteiros.
Estrada nacional n.º 8 – entre Bretanha e Capelas.
Estrada nacional n.º 8 – entre Rabo de Peixe e na Ribeira Grande.
Estrada nacional n.º 8 – entre Ribeirinha e Coroa do Lombo.
Estrada nacional n.º 8 – ramal das Caldeiras.
Estrada nacional n.º 8 – entre Pôrto Formoso e Maia.
Estrada nacional n.º 8 – entre Lombinha da Maia e Nordestinho.
Estrada nacional n.º 8 – da Pedreira do Nordeste à Ribeira do Tosquiado.
Estrada nacional n.º 8 – ramal do Faial da Terra.
Estrada nacional n.º 8 – na Lomba do Alcaide.
Estrada nacional n.º 8 – em Água de Pau.
Estrada nacional n.º 8 – na Lagoa.
Estrada nacional n.º 9 – entre Ponta Delgada e Alminhas de Rabo de Peixe.
Estrada nacional n.º 10 – entre Ponta Delgada e Fajã de Cima.
Estrada nacional n.º 11 – ramal da Ribeira Quente.
Estrada nacional n.º 13 – entre a Ribeira do Purgar e Nordeste.
Estrada nacional n.º 13 – ramal de Água Retorta.
Estrada municipal da Lagoa do Congro.
Foram pavimentadas com calçada de paralelipípedos as estradas, ruas de Ponta Delgada, entre a Rotunda da Avenida Príncipe de Mónaco e a Pranchinha, e entre a Rua da Misericórdia e o Caminho da Fajã de Cima, e parte de uma rua da Ribeira Grande.
Secretaria da Direcção das Obras Públicas do distrito de Ponta Delgada, 30 de Junho de 1938.
|