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Index
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Costa, R. M. M. (2005), Desempenho de postos militares e cargos da administração nos Açores em finais do regime de capitania-geral. Alguns aspectos. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 139-158.
Sumário: A sociedade açoriana de Antigo Regime reproduz o modelo hierarquizado tripartido vigente no reino de Portugal. No decorrer do regime de capitania-geral introduzido por Pombal em 1766, os governantes procuram impor regras restritivas para a ocupação dos postos militares e de cargos da administração ao nível municipal, exigindo o estatuto de nobre. A observação dos documentos enviados para o governo do reino, contendo informação sobre o desempenho dos magistrados e oficiais dos corpos militares revela contradições. Por um lado entre os níveis de desempenho registados e a realidade conhecida através da demais documentação e, por outro, entre os requisitos para preenchimento de postos militares e o verdadeiro estatuto dos seus detentores. Parece poder concluir-se, para algumas ilhas de menor dimensão como o Faial, que a sociedade açoriana não tinha capacidade para dar satisfação às exigências normativas, resultando, deste ponto de vista, uma sociedade atípica numa época de transição.
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Costa, R. M. M. (2005), Military ranks and office-holders performance in the Azores in late captaincy-general regime. A brief survey. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 139-158.
Summary: By the end of the eighteenth-century the social pattern of the Azores islands was still a reproduction of the traditional three estates in the kingdom of Portugal. During the captaincy-general’s regime introduced by Pombal in 1766, central government urged local authorities to strictly adhere to the principles requiring nobility status as a precondition to occupy military ranks as officers in the line army and militia as well, and also to be elected to the municipalities. Reports sent to the kingdom by the captain-general on the performance of local authorities and military officers show an obvious contradition when one compares its praising statements with the strong criticism found in other sources. Those reports show for a good deal of situations that a substantial part of the office-holders did not comply with the rules of law in what concerns its requirements. As a conclusion one may say that in the smaller islands of the Azores, namely the island of Faial, the social structure was unable to provide military needs and posts in the administration according to the standards of nobility as required by the crown. Under the circumstances the Azorean traditional society was indeed a “non-typical society” in a time of transition. |
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Ricardo Manuel Madruga da Costa – rmmc2@sapo.pt |
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Palavras-chave: Sociedade de Antigo Regime, postos militares, cargos da administração, capitania-geral, desempenho. Key-words: Early-modern Age society, military ranks, office-holders, captaincy-general, job performance. |
Introdução
As disposições regimentais outorgadas a D. Antão de Almada, primeiro capitão-general dos Açores nomeado no âmbito da reforma de Pombal de 2 de Agosto de 1766 (Leite, 1988), dispunham, entre as várias matérias contempladas, que o capitão-general deveria enviar anualmente mapa do qual constaria uma avaliação do estado da defesa de cada ilha e, em particular, sobre os efectivos dos vários corpos militares e suas qualificações e qualidades para o exercício dos postos assegurados (Leite, 1988: 28-29). Estas disposições, dada a natureza do regimento, tinham um carácter permanente e vinculativo para os sucessores de D. Antão de Almada.
De modo análogo, e também com uma periodicidade anual, os capitães-generais deveriam organizar uma informação circunstanciada contendo a avaliação do desempenho, como hoje seria dito, relativa aos magistrados em serviço no arquipélago, esclarecendo as suas qualidades quanto a “…literatura, prudência, préstimo, Limpeza de Mãos, acolhimento das partes, e mais qualidades, que houver, ou faltar em cada hum dos sobreditos…” (Leite, 1988: 31), como referia o texto regimental.
Num plano um pouco diferente, mas igualmente relevante para o tema em objecto de estudo, são de recordar outras normas de não menor relevância que a coroa entendeu confiar ao mesmo governante e seus sucessores. Como é sabido, para além das disposições gerais do regimento em estudo, D. Antão de Almada é ainda portador de um conjunto de instruções, ditas particulares e para “governo secretíssimo”. Trata-se de um normativo circunstanciado do qual constam também orientações concretas quanto ao governo das ilhas, designadamente na área da Fazenda. Nestas instruções, do ponto de vista que interessa relevar – e porque se verificaria uma grande indisciplina nas nomeações para as vereações das ilhas – constam ainda preceitos específicos quanto à forma de prover os cargos municipais, sendo estabelecido com rigor que o poderão fazer “… somente as Pessoas mais distintas das respectivas Terras…” (Leite, 1988: 42). O diploma censurava com aspereza a inclusão de pessoas de inferior condição. No mesmo normativo, ao capitão-general era ordenado providenciar que o provimento dos capitães-mores, sargentos-mores e capitães das ordenanças, fosse assegurado apenas por pessoas nobres.
Estas disposições, independentemente das características do quadro social da época, eram compreensíveis à luz de uma ideia muito presente na documentação de então; a de criar condições para que a nobreza insular tivesse oportunidades de serviço ao rei condizentes com a sua condição. Nos pressupostos da criação do Regimento Insulano – jamais instalado nos Açores como previa a reforma de Pombal – era incluída esta preocupação de proporcionar às elites açorianas postos militares de acordo com o seu estatuto social. O tempo mostrou que tal preocupação não passou de retórica, já que na prática assim não sucedia. Ainda em 1809, a propósito da patente apresentada por José Godinho da Costa Ramalho com mercê de capitão agregado do batalhão de Angra, o general protesta, alegando que os nobres locais se sentirão lesados por verem pessoas estranhas ocuparem os postos nas ilhas (BPARAH, Capitania Geral dos Açores, Livro 4.º: fl. 156).
Entretanto, recuando aos normativos fundadores da Capitania-Geral, menos compreensível é a afirmação constante no § 20 das “Instruções…”, assumindo que o novo governador das ilhas não terá dificuldade em conformar-se com aquelas regras visando contemplar a nobreza, uma vez que “…sendo tão numerosa, não podem nunca faltar Pessoas dignas de Ocuparem os referidos empregos…” (Leite, 1988: 42).
Não é de tomar por garantida esta abundância, pelo menos se generalizada à totalidade do arquipélago e não surpreende um eventual erro de avaliação porquanto, na hierarquização das rendas administradas pela Fazenda dos Açores, o diploma coloca as rendas da Alfândega em primeiro lugar e os dízimos em segundo, quando a realidade aponta em sentido exactamente oposto (Costa, 2003: 474 ss.).
Por outro lado, são de ter em conta inexplicadas indisponibilidades que a documentação por vezes nos apresenta, além da conhecida indolência e desinteresse de muitos filhos segundos, como se pode concluir das várias queixas formuladas pelos capitães-generais (Leite, 1971: 325 ss.).
Uma sociedade de Antigo Regime
A estruturação da sociedade açoriana não beneficia de qualquer disposição específica que a isente da natural integração nos moldes em que a sociedade portuguesa se organiza. Ou seja, no arquipélago dos Açores, no período em estudo, a sociedade está organizada conforme o modelo das sociedades de Antigo Regime.
Isto não impede a verificação de fracturas que permitiam a mobilidade ascendente de pessoas cujo estatuto, riqueza ou benefício de qualquer espécie, permitia aquela promoção. Num dos documentos em que este estudo se baseia – e isto apenas constitui um detalhe avulso, mas, talvez, expressivo – o autor de uma informação relativa à oficialidade faialense, ao caracterizar a avaliação que fazia do capitão de milícias António Garcia da Rosa, dizia não ser nobre, para logo corrigir em nota final, registando “quando é certo que a goza em atenção aos cargos que seu Pai tem servido de Juiz de Fora, Corregedor, e graduação de Desembargador” (BPARAH, 1818-1821: doc. s.n.). De forma a comprovar o fenómeno de mobilidade a que é feita referência, é de ter em conta um documento de 1812 que o Coronel Estácio Machado d’Utra Telles designa “Relação nominal das pessoas, que na Villa da Horta da Ilha do Fayal há pertencentes á Nobreza della” (BPARAH, 1808-1812: doc. s.n.) e na qual inclui vinte e cinco indivíduos (1), acrescentando depois, separadamente, sem explicação, um outro grupo de seis pessoas que diz gozarem de nobreza e que a Câmara também chama para se incorporarem nas cerimónias religiosas, ocupando lugares de destaque ou ajudando a transportar o pálio, lanternas, etc. Pelo conhecimento da documentação deste período, nomeadamente da que se refere aos despachos alfandegários (Costa, 2003, II), pode concluir-se que todos eles eram negociantes da praça faialense (2). Não surpreenderá um certo hibridismo social que gradualmente foi progredindo na sociedade açoriana, não só como reflexo normal da própria evolução económica, mas até porque a nobreza local parece eximir-se das suas obrigações tradicionais, dando oportunidade a que indivíduos estranhos às elites vão progressivamente ocupando o seu lugar. Tal situação é bem evidente na veemente advertência que o capitão-general dirige à Câmara de Angra reprovando o desinteresse da nobreza da cidade em participar nos actos a que tem obrigação de comparecer e manda punir os que não cumprirem (BPARAH, 20 Set. 1806 - 26 Março 1808: 217). Aliás, em ofício de 13 de Setembro de 1809 do capitão-general para o governador de S. Miguel, sobre queixas quanto ao modo como o coronel de milícias de Ponta Delgada promoveu o alistamento de negociantes para aquele regimento, o mais alto magistrado do arquipélago refere explicitamente que “… sendo, como são os Negociantes Nobres pela dita Profissão convem sejão como outros Nobres contemplados para o acesso aos Postos nos Corpos Melicianos…” (BPARAH, 29 Março 1808 - 2 Maio 1810: 232).
Porém, em termos gerais, a sociedade apresenta-se hierarquizada, dominada pelos estratos da nobreza para os quais, por lei, está reservada a ocupação de determinados postos e cargos. Era esta, pelo menos em termos teóricos, a realidade vigente no tempo. A este propósito, veja-se trabalho sobre as elites micaelenses (Rodrigues, 2000), onde é chamada a atenção para os inconvenientes de generalizações interpretativas, já que as especificidades locais podem trair tal propósito. Sendo certo que reconhece que para a sociedade micaelense a realidade das elites de Ponta Delgada, não corresponde obrigatoriamente ao modelo dos restantes núcleos populacionais da ilha, aceitar-se-á que o mesmo fenómeno se verifique em ilhas de menor dimensão. Mesmo de forma mais evidente. Ou seja, como defende (Rodrigues, 2000), estão em presença “níveis de honra” diversificados.
Notas
(1) Da lista transcrevemos, com actualização ortográfica: Gaspar Pereira de Lacerda, Inácio Soares de Sousa, Manuel Inácio do Canto, Luís Peixoto da Silveira e Lacerda, José Francisco da Terra Brum, António Pereira de Labate, Jacinto Manuel de Brum Athayde, Francisco Peixoto da Silveira, Jorge Peixoto da Silveira, Belchior Homem Cardoso, Gonçalo de Labate, Manuel Inácio Brum, António Taveira Frias, Manuel Gutierres da Silveira, António Homem de Melo, Francisco Silveira Vilalobos, desembargador Manuel Garcia da Rosa, António Garcia da Rosa, José Francisco Berquó, Tomaz Francisco Berquó, Bernardo Teles d’Utra Machado, Manuel Jacinto de Labate, Nuno Álvares Pereira Forjaz, Tomaz Luís Leal e António Silveira Betencourt.
(2) Os seis nomes constantes da lista são os seguintes: Sérgio Pereira Ribeiro, Dr. Roque Taveira, António de Oliveira Pereira, Estolano Inácio de Oliveira Pereira, Vitoriano José de Sequeira e João Aurélio Ramos.
Análise de dados
A análise abaixo contempla, de um lado os processos de avaliação do desempenho de militares e de magistrados e, de outro, os aspectos que respeitam à qualidade social dos candidatos e detentores dos postos militares para os quais era requerido o estatuto de nobreza. Para cada uma das análises, na secção própria, produzem-se breves conclusões.
1. As questões do desempenho
1.1. Militares. De um mapa de síntese sobre o desempenho dos oficiais de milícias do Faial em 1821, incidindo sobre um universo de 27 oficiais (1), resumem-se no Q uadro I os parâmetros de avaliação, indicando-se com sinal + e sinal – a natureza favorável ou desfavorável da informação. O número de casos no Quadro I não corresponde, nalgumas situações ao total dos casos observados porque nem todos os parâmetros foram alvo de apreciação para todos os oficiais.
Quadro I
PARÂMETROS DE AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS OFICIAIS DE MILÍCIAS
Por “agilidade” era entendido o conjunto de atributos especificamente militares, capacitando o oficial para o exercício das funções. O comportamento tinha a ver com a dupla vertente civil e moral.
No ano anterior, em mapa de avaliação idêntico era considerado também o carácter, em relação ao qual os oficiais recebiam todos informação favorável (BPARAH, 1818-1821: doc. s.n.). Neste último caso o governador completava a informação afirmando que todos os oficiais tinham “boas ideias religiosas e políticas”, como era próprio de bons católicos e leais vassalos. Para as ordenanças, o mapa respectivo pode resumir-se no Quadro II em que a terminologia e os parâmetros variam um pouco em relação ao anterior e que incide sobre um universo de 39 oficiais (2):
Quadro II
PARÂMETROS DE AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS OFICIAIS DE ORDENANÇAS
Complementarmente, temos um oficial acusado de praticar ”rapaziadas” e dois de terem “génio acre”.
1.2. Magistrados. Como empregados civis, designação então comum, de um mapa de 1811 contendo informação sobre os magistrados dos Açores, enviado pelo capitão-general Aires Pinto de Sousa para o Conde das Galveias, o espectro de avaliação é alargado consideravelmente (AHU, 1811, cx. 73: doc. 6). Assim, a par da competência profissional, é considerada a afabilidade no tratamento com as partes, zelo pelo serviço, inteligência e prontidão no despacho, carácter e desinteresse e ainda a limpeza de mãos, ou seja, a honestidade. O capitão-general avaliava os dois corregedores, o provedor dos resíduos e os juízes de fora em efectividade de funções nos Açores, a todos classificando favoravelmente. Apenas o juiz de fora de Ponta Delgada, bacharel Roque Francisco Furtado de Melo, mereceu alguma reserva por haver queixas contra ele. Uma apreciação, mesmo que ligeira, de mapas idênticos para anos próximos daquele agora considerado, leva a crer que se tratava de um exercício de rotina e repetitivo, quer nos termos adoptados quer na natureza das apreciações produzidas.
Observando um mapa de avaliação dos empregados civis da ilha do Faial em 1820 (BPARAH, 1818-1821: doc. s.n.), a bondade dos visados é, em geral, apanágio de todos eles (3). Os vereadores têm todos “inteireza de carácter e desinteresse”; os almotacés têm “boa reputação” e a maioria recebe apreciação favorável com excepção de um dos advogados que é tido por pessoa de talento mas mau carácter. Dos escrivães apenas um será conceituado como pessoa recta, já que os colegas recebem designativos menos lisonjeiros, como “duro com as partes” e “mal conceituado”. Os juízes pedâneos são contemplados, sem excepção, com o reconhecimento de possuírem bom carácter e de serem desinteressados.
Como informação adicional interessante, a avaliação abrange também os cônsules de países estrangeiros aos quais se aplica, indistintamente, o juízo de revelarem o melhor carácter, probidade, religião e boas ideias consentâneas com o sistema político.
Em nota final está registado que o governador não remete informação sobre as ordenanças do Pico mas todas são de “costumes louváveis e dignos de estima”.
Entre esta documentação formal de circulação obrigatória e periódica para as instâncias da corte, em observância da lei régia, e o teor da burocracia que enxameava os circuitos ligando os governantes e magistrados insulares aos vários níveis – esta certamente mais realista e espelhando o dia a dia de uma administração incapaz e quezilenta – há uma diferença insanável. Em tese que analisa o desempenho da estrutura militar e da administração insular nas duas primeiras décadas do séc. XIX (Costa, 2003), conclui-se que a avaliação se situa nos antípodas daquela a que a documentação que se utiliza neste estudo pode inculcar. De facto, nestes mapas de avaliação, não estão: (a) os corruptos, os incompetentes e os prepotentes; (b) os corregedores e juízes que os capitães-generais admoestavam frequentemente; (c) os magistrados a quem o capitão-general manda instaurar processos por peculato e contrabando e que, no desfecho, expulsa para o Brasil; (d) os vereadores faltosos e absentistas que em tempo de vindima inviabilizavam por meses o funcionamento municipal; (e) os juízes de fora, inconformados com a sorte que lhes cabia quando atirados para os confins de uma ilha, reincidentes nas ausências indevidas das suas respectivas jurisdições. Mas, na verdade, estavam presentes e activos na administração açoriana de Oitocentos.
Passando ao plano das coisas do mundo castrense, ocorre idêntica situação de desajustamento entre o quadro de uma avaliação formal e imposta, destinada à apreciação da corte e a realidade do quotidiano. Para exemplificar o fosso que separa o teor das informações comentadas e a realidade com que as autoridades se confrontavam, segue transcrição de parte de um longo ofício do capitão-general para o Visconde de Anadia, no ano de 1807, a propósito das ordenanças e das medidas que propõe:
“… mas o mal ficará sem cura perfeita se o dito Corpo [as ordenanças] não tiver Officiaes idóneos. Os actuaes são pela mayor parte incapacíssimos, e nomeadamente o Capitão Mor, e o Sargento Mor. Todos elles, ou quazi estão incursos na pena de perdimento dos Postos, huns porque entrarão para elles por meios illegaes, e sem as circunstancias que a Ley requer, outros porque por negligentes, e ignorantes desmerecem a honra de os servir” (BPARAH, 18 Julho 1806 - 8 Maio 1808: 117).
E noutro passo do mesmo ofício, referindo-se às condições indispensáveis dos que substituirão os que considera incapazes, acrescenta:
“…que unão á Nobreza bens sufficientes para decentemente se manterem, e o requisito de terem servido com prestimo nas Praças de Cadetes, ou de subalternos no batalhão que guarnece o Castello de S João Baptista desta Cidade, ou nas Guarnições dos castellos de S. Braz de Ponta Delgada, e de Santa Cruz da Vila da Horta” (BPARAH, 18 Julho 1806 - 8 Maio 1808: 117).
De novo, um quadro contrastante sobre o qual não se torna difícil fazer uma opção quanto ao que era, de facto, a realidade.
2. Rigor das normas e realismo das práticas
Nas considerações que seguem é tida em conta apenas a situação na tropa de milícias e ordenanças. Em trabalho anterior (Costa, 2003, I: 153 ss.) sobre os Açores no período final do governo de capitania-geral, ficou evidente a falta de qualidade destes corpos militares, nomeadamente quanto à oficialidade. Nesse trabalho está referido um ofício de 1807 do capitão-general, D. Miguel António de Melo, no qual informa ter dirigido ordens de natureza militar aos juízes de fora de Santa Maria, Graciosa e Flores, porque os capitães-mores não revelavam capacidade de as entender sem explicação verbal e circunstanciada. Em 1811, num registo consonante com o que acima está afirmado, o governador-militar de S. Miguel remetia ao general um requerimento do capitão de ordenanças da Ribeira Grande, Cosme Pimentel, informando sobre a incapacidade deste para ocupar aquele posto em virtude de não saber ler nem escrever, sublinhando tratar-se de alguém proveniente do ofício de cardador e que, por isso, não teria o respeito dos seus homens. Sobre este graduado da tropa de ordenanças, o governador acrescenta este pormenor: “é um grulha impertinente”.
Outro caso. Quando Alexandre Gamboa Loureiro, juiz de fora de Santa Maria no ano de 1800, diligencia no sentido de prover o posto de capitão-mor da ilha devido ao facto do titular de então estar incapacitado por doença, são as seguintes as candidaturas que submete ao capitão-general (Costa, 2003, I: 153):
– António Coelho, com cerca de 80 anos, por ser o capitão mais antigo mas que é “um pobre rústico que apenas sabe escrever o seu nome”;
– Luís Manuel de Figueiredo, também capitão de ordenanças, o qual, devido a “demência” está sob curadoria da esposa;
– Manuel José da Câmara Coutinho, com 28 anos de idade, igualmente com o posto de capitão e filho-família ainda sob o tecto paterno;
– Bernardo José Monteiro, outro capitão de ordenanças, que o juiz considera ser homem sério mas destituído de inteligência e incapaz de desempenhar cargos públicos “de consequência”. Residiria longe da vila vivendo de bens modestos e, no dizer do juiz, “com pouco esplendor”.
Mesmo numa ilha de maior importância no quadro da época, o Faial, no ano de 1807, dos 65 oficiais de ordenanças da ilha, apenas dois têm foro da Casa Real, 16 dedicam-se à vinicultura e os demais são detentores de terra, oficiais mecânicos e de outros ofícios.
Mais esclarecedores são os casos das vilas picoense das Lajes e da Madalena, em que os seus 56 e 33 oficiais de ordenanças, respectivamente, são quase todos lavradores de terras e vinhas, conforme a terminologia então usada (COSTA, 2003).
Tudo isto pressupunha um processamento irregular na nomeação dos candidatos, envolvendo interesses e esquemas fraudulentos visando a obtenção de privilégios impeditivos do exercício de funções implicando maior responsabilidade e esforço, para além de propiciar uma verdadeira cadeia de perpetuação das elites locais, independentemente de ostentarem, ou não, estatuto de nobreza. Será, talvez, por este conjunto de motivações estranhas ao verdadeiro interesse da coisa pública, que o capitão-general Aires Pinto de Sousa, em correspondência de 1811 para o capitão-mor de Santa Maria, denuncia o facto de serem em maior número os postos de oficiais, sargentos e cabos do que os de soldados.
Aliás, não é surpreendente a clara transgressão das normas tão zelosamente estabelecidas pela corte quanto aos requisitos indispensáveis ao preenchimento dos postos de comando das ordenanças. Embora em termos meramente especulativos, seja possível admitir que a base de recrutamento seria efectivamente restrita. De um mapa do “Estado actual das Ordenanças da Ilha do Pico nas tres Capitanias Mores em que se devidem, Anno de 1803”, conclui-se que das 19 companhias de ordenanças apenas 9 têm preenchido o posto de capitão. É óbvio que à data da elaboração do mapa diversas circunstâncias poderiam concorrer para explicar o facto. Entre elas, não é de afastar a que foi apontada.
Esclarecedor quanto à qualificação social requerida, ou relativamente aos seus desvios, é o conteúdo de uma informação do governador do Faial datada do ano de 1821 em que, dos 27 oficiais de milícias, 13 não gozam do estatuto de nobreza. Note-se que os oficiais, que não são nobres, não têm ocupação, excepto o quartel-mestre que é negociante.
Dos dados apresentados podem ser formuladas algumas conclusões. A ideia de uma sociedade típica de Antigo Regime como modelo imediatamente extrapolável para o contexto açoriano, parece dever merecer alguma reserva. Se é certo que a ordem social vigente no arquipélago se conforma, em termos gerais, com o ordenamento jurídico da nação, não será menos ajustado pensar que as condicionantes locais moldam a realidade de cada ilha ou comunidade, impondo constrangimentos inelutáveis que a força dos normativos não logrará anular. A sociedade açoriana deste período é, por isso, e deste ponto de vista, algo atípica. O isolamento e a fraca atracção que algumas ilhas exercem na fixação das elites; a fragilidade demográfica inerente à sua própria dimensão; a distância a que alguns núcleos populacionais se situam dos centros urbanos mais atractivos – tudo isto pode impedir a estruturação de um tecido social compaginável com o modelo social em questão. Segundo este raciocínio, a base de recrutamento baseada nas elites rarefaz-se, inviabilizando a fidelidade preconizada em relação à pureza dos normativos emanados da coroa. A sociedade açoriana, deste ponto de vista, será uma sociedade híbrida, tolerando a este nível uma verdadeira promiscuidade social, certamente indesejada pelos governantes e pelos estratos de uma nobreza urbana mais ciosa dos seus privilégios e condição.
Notas
(1) 1 coronel, 1 tenente-coronel, 2 ajudantes, 1 quartel-mestre, 7 capitães, 9 tenentes e 6 alferes.
(2) 1 capitão-mor, 1 sargento-mor, 1 ajudante, 17 capitães e 19 alferes.
(3) Os avaliados são: 3 vereadores, 1 procurador do concelho, 1 tesoureiro, 1 escrivão da câmara, 2 almotacés, 2 guardas-mores da saúde, 1 distribuidor, contador, 4 escrivães do judicial, 1 escrivão dos órfãos, 3 advogados não bacharéis, 2 procuradores, 1 alcaide, 1 escrivão do alcaide, 1 porteiro e 12 juízes pedâneos.
Bibliografia
Fontes
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Açores, 1811, cx. 73.
BIBLIOTECA PÚBLICA E ARQUIVO REGIONAL DE ANGRA DO HEROÍSMO, Capitania Geral dos Açores, Livro 3.º de registo das contas do Governo Geral dos Açores para as Secretarias de Estado, 18 Julho 1806 - 8 Maio 1808.
IDEM, Capitania Geral dos Açores, Livro 4.º de registo das contas do Governo Geral dos Açores para as Secretarias de Estado, 10 Maio 1808 - 27 Agosto 1811.
IDEM, Capitania Geral dos Açores, Correspondência, Ilha do Faial, Governadores, 1808-1812, mç. 7.
IDEM, Capitania Geral dos Açores, Correspondência, Ilha do Faial, Governadores, 1818-1821, mç. 9.
IDEM, Capitania Geral dos Açores, Livro 5.º de registo de portarias e ordens do Governo Geral dos Açores, 20 Setembro 1806 - 26 Março 1808.
IDEM, Capitania Geral dos Açores, Livro 6.º de registo de portarias e ordens do Governo Geral dos Açores, 29 Março 1808 - 2 Maio 1810.
Livros e Artigos
COSTA, R. M. M. (2003), Os Açores em finais do regime de Capitania-Geral. 1800-1820. 3 vols., Ponta Delgada, Universidade dos Açores. [Tese de doutoramento policopiada].
LEITE, J. G. R. (Dir.) (1988), O Códice 529 – Açores do Arquivo Histórico Ultramarino. A Capitania-Geral dos Açores durante o consulado pombalino. Açores, Secretaria Regional de Educação e Cultura; Universidade dos Açores.
IDEM (1971), Administração, Sociedade e Economia dos Açores, 1766-1793. In Arquivo Açoriano. Lisboa, Ed. do Grupo de Estudos Açorianos.
RODRIGUES, J. M. D. (2000), São Miguel no Século XVIII. Casa, família e mecanismos de poder. 2 vols., Ponta Delgada, Universidade dos Açores. [Tese de doutoramento policopiada].
Documentos
Documento
(BPAAH, Capitania Geral dos Açores, Correspondência, Ilha do Faial, Governador, 1818-1821, mç. 9, doc. s.n.)
Ill.mo e Ex.mo S.or
Em resposta ao Officio de V. Ex.a deste N.º remetto a V. Ex.a as relaçoens, que no dito officio me ordena lhe envie ás quaes procedi conforme julguei conveniente, não só por não ter pessoal conhecimento do Caracter d’ Alguns individuos, q.e nas ditas relaçoens vão nomeadas, senão porque quis informar a V. Ex.a com toda a verdade. Não vão nellas incluidos os nomes do Juiz de Fóra desta Ilha, porque estando elle nessa bem podera V. Ex.a, conhecer a honra e probidade, integridade, e rectidão deste Ministro; assim como do Caracter, honra e probidade do Juiz de Fóra da Ilha do Pico; os quaes se tem comportado com Costumes exemplares religiosos, e politicos pois q.e os primeiros existem nelles essencialm.te e quanto aos segundos são tão sisudas suas idêas, quanto são grandes seus talentos p.a as saberem conservar.
Na relação dos Officiaes de Milicias tambem não vai especificado o Caracter, Costumes, e ideias do respectivo Coronel, mas posso com toda a verdade affirmar q.e he hum honrado official, cujos louvaveis Costumes, assim como ideas religiosas, e Politicas, são de m.to bom crédito. A par deste Off.al devo pôr o Capitão Mór Jozé Francisco da Terra, hua das primeiras pessoas desta Ilha, caracter sisudo, costumes polidos, ideas religiosas m.to sãas, e em idêas politicas não // não gasta o seu tempo. Igual procedimento observa o Tenente Comd.te Interino da Companhia Paga, cujos Costumes são irreprehensiveis, tanto Militares, como Civis. Bernardo Telles d’ Utra Machado, Escrivão d’Alfandega desta Ilha, cujos costumes, caracter, e idêas não são declaradas na relação por elle assignada, he huma pessoa m.to bem comportada, da primeira Nobreza, e muito intelligente. Quanto a Empregados Publicos, e Funcionarios, pelas relaçoens conhecerá V. Ex.a seus Caracteres. Quanto aos Consules das Naçoens Estrangeiras nesta Ilha, posso informar a V. E.a, que todos conservão o melhor Caracter, muita probidade, m.ta relegião, e m.to boas idêas, q.e em couza alguma offendem o systema Politico. São por sua ordem o Consul Hespanhol Joze Teixeira Maciel. Sergio Pereira Ribeiro Consul Francez. Jozé Curry da Camara Cabral, Consul Russiano, Thomaz Parkin, Consul Inglez. João Bass Dabney, Consul Americano. Pelo que toca a Empregados Ecclesiasticos, assim Regulares, como Seculares e aos Sugeitos debaixo do dominio destes, posso asseverar a V. Ex.a que são assaz louvaveis, e edificantes seus Costumes. Pelas relaçoens juntas verá V. Ex.a mais exactamente os Costumes e Caracteres de todos os Empregados, e pessoas de representação publica nestas duas Ilhas ficando V. Ex.a persuadido, que as idêas religiosas, q.e conservão são todas puras, e as suas idêas politicas só tendem a mostrar o Amor, respeito, e vassallagem ao Nosso Augusto Soberano. Não envio a V. Ex.a as relaçoens dos Capitaens Móres da Villa da Magdalena, e de S. Roque por me não terem sido entregues. Com tudo digo a V. Ex.a que os Costumes destes, assim como do Capitão Mór da Villa das Lagens são louvaveis, e dignos d’ estima. D.s G.de a V. Ex.a Fayal 19 de Novbr.º de 1820
Il.mo e Ex.mo S.r G.or e Cap.m Gen.al.
Jozé Roberto Pires [?] //
Relação dos Officiaes efectivos, e aggregados da Comp.a d’ Infantaria com exercicio d’ Artilharia da Guarnição da Ilha do Faial, com as declaraçoens nella especificadas
Faial 1º de 9bro de 1820
Quartel do Faial 1.º de 9bro de 1820
Antonio Pereira de Lacerda Leal . Ten.te Comd.te Interino//
Relação nominal, e Circunstanciada dos Officiaes do Regimento de Milicias da Ilha do Fayal
Ill.mo S.r
Julgo ter desempenhado quanto V. S. de mim exigio em Sua Ordem de 7 do corrente mêz; e quanto a idêas religiosas, e politicas, não sei que nenhum dos meus Officiaes tenha outras, que não sejão aquellas, que tem hum bom Cathólico, e hum Leal Vassallo.
D.s G.de a V. S. Fayal 10 de Novembro de 1820
Estacio Machado d’Utra Telles
Coronel
Relação dos Officiaes do Corpo de Ordenança desta
Ilha do Fayal
Villa da Horta do Fayal 14 de Novembro de 1820
Jorge Fran.co da Terra Brum
Cap.m Mor
Relação dos Empregados civis nesta Ilha
Luiz Peixoto de Lacerda e Silveira
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