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BOLETIM DO NCH Nº 15, 2006
OBRA DE PEDRO DA SILVEIRA. ENSAIOS. ESTUDOS
José António Garcia de Chaves
Peregrinação e Memória – uma abordagem à escrita de Pedro da Silveira
  Índex
Sumário
Summary
Introdução
O fastio da ilha
O poeta e os outros
A errância e o apelo do sangue
O entrosamento regional
O mundo dos ausentes
O tempo e o longe
Lembranças vagas dos mortos
O tempo e a efemeridade
Bibliografia
  Chaves, J. A. G. (2006), Peregrinação e memória: uma abordagem à escrita de Pedro da Silveira. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 59-75.

Sumário: De entre a variedade temática da obra de Pedro da Silveira, destacamos neste trabalho a imagem da ilha enquanto espaço residual e de futuro, concentrando em si a memória dos antepassados, a dormência e as ambições dos que a habitam. O pasmo e o olhar singularizam o discorrer do tempo na ilha, forçando os locais a sonharem com outras paragens, com outros cais. A fome, na obra de Pedro da Silveira, é universal, extra-local, porque a sede de sobrevivência e o apego à terra são elos comuns a todos os que se acham errando pelo mundo presos ao sangue e aos retratos deixados no chão nativo.
  Chaves, J. A. G. (2006), Pilgrimage and memory: a revisitation of Pedro da Silveira’s poetry. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 59-75.

Summary: Within the thematic variety of Pedro da Silveira’s poetic work, a picture of the island stands out revealing it as a space loaded with signs, as well as with memories of ancestors, portraits of the stillness of lives filled with wonderings about the future. References to the sameness of daily life mirror the passage of time in the island and explain why its inhabitants constantly dream of other places and other wharves. Longing in Silveira’s poems is a universal feeling that encompasses both a thirst for survival and a strong attachment to the island, common to all those who leave it and spread themselves throughout the world, although forever moored to their blood ties and to the images of their native soil.

  José António Garcia de Chaves – jachaves@portugalmail.pt
 

Palavras-chave: ilha, isolamento, emigração, tempo e memória, poesia açoriana, raízes, realismo. Key-words: island, isolation, emigration, time and memory, Azorean poetry, roots, realism.

«A cada hora invento a cor e o hálito
de ignoradas paisagens.
A cada hora, inquieto, me interrogo:
O que terei depois?

E cada hora sempre me reduz
à certeza do havido.» (Silveira, 1962: 44)

 

Introdução

Pedro da Silveira tende na sua escrita para a pessoalização/ individualização da ilha e das suas gentes, pressupondo um carinho evidente pelas tradições, pela vernaculidade e percursos de vida do povo anónimo. Não deixa, neste contexto, de ser evidente o seu desdém face ao cosmopolitismo presunçoso que as capitais alimentam. A poesia de Pedro da Silveira está envolvida com a matriz humana da ilha, com a sua condição tutelar e com a influência que exerce sobre os seus sobreviventes absortos. Notamos uma aproximação do poeta às gentes e ao húmus nativo por ele ser o poeta-pintor de circunstancialismos e de quotidianidades ilhoas: “Antonho Cristove,/ tripulante de todos os veleiros/ correu todos os oceanos,/ conhece todos os portos,/ sabe a fúria dos ciclones/ e as calmarias do Golfo…// e ficaram marcadas no seu corpo/ raivas de capitães americanos,/ de capitães açoreanos,/ de capitães de Cabo Verde…” (Silveira, 1952: 45). Pedro da Silveira é um autor implicado com o tempo e com a vertente universalizante da ilha, ilha essa deixada pelos que vão à demanda das Américas perdidas, dos que cumprem, enfim, uma odisseia fatal: sair, lutar, ganhar, perder, mas voltar sempre ao chão de nascimento para morrer, depois de ter cumprido a viagem e “as velhas fomes gritando anseios de largar” (Silveira, 1952: 47): “Companheiros de aventura,/ há tanto tempo os perdeu:/ água do mar os levou,/ terra da terra os cobriu…// Ti Antonho Cristove conta a sua vida/ e os seus olhos cansados/ olham ainda pra o mar/ num jeito de quem navega” (Silveira, 1952: 47).

Este ponto de vista reforça a visão de Álamo de Oliveira quando afirma que o poeta em questão “é capaz de olhar o Mundo sob múltiplas abrangências e de entender e interpretar os sinais que os tempos vão debitando” (Oliveira, 2004: 75-80).

O Fastio da Ilha

“Ó paz honrada, antiga, vegetal,/ onde te abrigas, desolada? Trilha/ o céu opresso uma ave de metal” (Silveira, 1962: 87).

Em Sinais de Oeste (1962) é possível falarmos de uma poética da água e do sangue. O livro em questão começa com um texto dedicado ao mar enquanto elemento vitalizador, oposto à terra e ao fastio que ela representa. Ela (terra) incita à partida porque “Horizonte verdadeiro é o da água e céu” (Silveira, 1962: 11). Se a terra é segura e previsível, e por isso mesmo pouco sedutora, o mar já é do domínio do medo e do temível; o mar é a probabilidade, a promessa, o outro lado, o olhar: “Fiquem os restelos para os secos e pecos/ que tiveram medo da navegação./ A mim, o Mar!” (Silveira, 1962: 12).

O ímpeto para a largada (o “Além-de-Aqui”) já está inscrito no sangue. Julgamos, pois, que a partida, mas sobretudo a volta ao lugar da ilha são constantes temáticas na poesia de Pedro da Silveira não só em A Ilha e o Mundo (1952), como também em Sinais de Oeste. O poeta, enquanto ilhéu, divide-se entre o ficar e o partir, esboroando as fronteiras do “longe” e do “aqui”. O mar representa uma figura omnipresente na sua vida, desde a infância – “Mais uma vez estou aqui./ O mesmo mar de outrora,/ azul e cor-de-cinza./ Violácea, a paisagem./ E esta paz de espelho velho” (Silveira, 1962: 15), exercendo sobre ele uma influência ensurdecedora. Por outro lado, será importante acrescentar que na obra poética de 1962 muitos textos, reportando-se ao contexto da ilha, apostam num realismo cru e aproximado ao concretismo que o ambiente exige: marés, ave, vento, pessegueiro, aromas, pedra, erva, entre outras, são palavras que, fixando o lugar, ilustram a circunstância ambiental insular do Oeste: “Uma ave, no vento./ É o grasnido/ da ave.// Que alegria lhe desata,/ nos nervos,/ o vento!// mais que sentido:/ visível,/ o vento!” (Silveira, 1962: 17). Corroborando este olhar impressionista, centrado na realidade exterior e objectiva, que paira sobre Sinais de Oeste, está o texto «Outonal (I)».

O poema é uma demonstração dos sentidos, com especial destaque do olhar que observa caprichosa e aturadamente a “tarde cor d’água”, os “figos maduros pendendo”, a “abelha diligente”, as “flores de canarroca”, descobrindo no verde abundante da paisagem cambiantes de monotonia e de prisão – “verde fúria de verde acorrentada,/ ócio verde, verde espanto de verde:/ escuro, aguado, claro, duro verde!...” (Silveira, 1962: 18). O verde é, portanto, a cor da ilha e a que melhor simboliza a vida demorada, parada.

O poeta e os outros

“Em toda a parte a marca dos teus passos, pioneiro!” (Silveira, 1952: 52).

As palavras de Álamo de Oliveira atestam o comprometimento do poeta com a vivência e realismo insulares que condicionam de forma brutal as personagens dos textos de Pedro da Silveira:

A poesia de Pedro da Silveira está particularmente envolvida por uma insularidade especial. Ela deixa transparecer uma militância que enaltece a condição de se ser ilhéu, enobrecendo-a com um discurso que heroiciza vivências e situações, não raras vezes dramáticas (…), e derivando, depois, para um apelo aos heróis (…), que a sua memória fez emergir e que personalizam o que a insularidade tem de universal (…) (Oliveira, 2004: 75-80).

Também Urbano Bettencourt foi sensível à captação, pelo poeta, do intimismo e da comunhão (com o universo) que o homem original corporiza no espaço poético de Pedro da Silveira ao salientar a procura das linguagens em que o poeta melhor se revê, na tentativa de exprimir a sua relação com o mundo; e constata-se igualmente no modo como ele utiliza os processos da oralidade: não apenas na transposição da fala popular de Ti Antonho Cristove em «Romance» (…) mas também no tom narrativizante daquele poema e de sequências como a de «Êxodo», cuja matriz se deve procurar precisamente na tradição oral (B ettencourt, 2004).

O sr. Laureano, Mariazinha, o caixeiro, Mateuzinho, ti Antonho Cristove, ti Jzé do Pico, ti Serpas, entre outras, são figuras que ilustram as vivências mundanas da ilha, pessoas que giram em torno de si próprias e das vidas simples que levam, ao mesmo tempo que habitam um espaço concentracionário, de “nuvens correndo no céu”, espaço de lentidão, de vultos e de rotinas despoetizadas, corriqueiras – “quando subimos ao seu pico mais alto/ e a manhã é aberta como nenhuma outra,/ o céu azul, o mar azul/ e ninguém ali dizendo/ palavras inúteis, inúteis, inúteis” (Silveira, s.d.: 30). Exemplo disto é o texto «Poema incompleto da menina da vila».

Em A Ilha e o Mundo Pedro da Silveira recorre ao tópico do poema corpóreo, isto é, a um texto que está perto do corpo e do sangue das gentes. A ilha, nomeadamente «San Miguel-o-Anjo», pertence ao tempo da lembrança e da infância. Ela é o motivo para o poeta ensaiar uma reflexão acerca de um tempo que sobrevive na memória, cristalizado no “canto sombrio da igreja”, na “espada ferrugenta e capacete emplumado” do santo em dias de missa, imagem entretanto modificada pelo crescimento do sujeito poético (“Outras vozes acordaram nos meus dias/ e chamaram para outros caminhos/ o menino que fui”.) Assim, o respeito e a veneração que outrora faziam parte da criança transformam-se, agora, em protesto, em apelo ao humanismo do santo, grito à sua indiferença e distância: “Hoje, San Miguel-o-Anjo da minha infância,/ menino santo de pau de zimbro insensível à vida,/ de ti só em mim persiste/ a vontade que eu tinha de gritar à tua indiferença/ que deixasses de ser santo/ e viesses cá para fora brincar comigo/ nas poças da beira-mar” (Silveira, 1952: 28). A cobiça acicatada pela distância e a especulação proporcionada pelo céu fechado é o tema do texto «Ilha». No poema «Para ti que ficas parado» o poeta revela, de modo explícito, que a esperança do “sonhador de viagens”, daquele que pretende escapar ao “monótono repetir”, é a matéria do seu “canto”, o povo “camponez marinheiro” dilacerado entre o ficar (parado) e o longe imóvel. Os “olhos de fome” vêm na sequência do poema anterior quando o poeta aponta o desejo de partir no barco e a ambição de descobrir as “Califórnias perdidas de abundância”. Em todo o caso, a ilha é sentida como espaço que estimula a adivinhação, espaço carecido de novidade – “– Que vida monótona a vida da vila!.../ Sem cinema nem teatro/ nem luz eléctrica” (Silveira, 1952: 22) –, o que, de resto, é ainda mais notório em «Dia de vapor». Falta à ilha a novidade que o vapor traz de fora, mas não só: a ilha renasce com as probabilidades que o navio acarreta. Este é o pretexto para os sonhos e projectos das gentes da vila (“Ai o dia santo de San Vapor/ despertando velhos planos de viagem,/ enchendo de espectativas e novidades/ a gente da minha ilha!...” (Silveira, 1952: 19). Porém, a ilha é, para os que se deixam ficar, lugar silencioso, fantasmagórico. Há o sonho persistente de querer ser “rancheiro”, “prospicador de oiro”, “operário das fábricas e das canarias”. Não obstante, esse espaço, apesar da privação que inculca, é vinculativo. A promessa da abalada, de realização exterior à exiguidade, coincide com o desejo de reconhecimento e de pertença: sair da ilha para ganhar o mundo, levando-a ancorada à memória. «Romance», «Memória» e «Êxodo» são textos centrados em torno da epopeia e da saga dos homens que deixaram a terra, mas que não abandonaram o eco da estirpe. Seja em Oakland, no Nevada ou em “toda a parte”, dando vida a “essa terra que não era a tua”, o homem ilhéu espera poder voltar. É interessante constatarmos que a ilha, por várias vezes, aparece habitada por Mortos, por figuras intemporais. A galeria de personagens de Pedro da Silveira demonstra o seu empenho em recriar o clima psicológico (que não apenas o social e económico) que molda os que nele sobrevivem. E vencer o meio hostil da ilha é uma odisseia, uma tomada de consciência da barreira que separa a terra do mar abissal e promete(dor) – “A ilha sempre dentro de si/ e a esperança de voltar…” (Silveira, 1952: 45). Embora sejam tipos ilhéus, alcançam, pela dimensão humana, uma valoração universal. O autor de Fui ao Mar Buscar Laranjas (Silveira, 1999) não foca na sua escrita desconhecidos, os sem-nome; pelo invés, solidariza-se com os seus, compreende os que padecem de fome, o que contribui para um clima de veracidade pitoresca. É a memória deles que deslumbra e alimenta a poesia e que vence o desgaste do Tempo: “Hoje estão mortos os velhos que me contavam/ essas histórias de barcas-de-baleia e terras grandes./ Também a minha infância está morta./ Muita coisa está realmente morta em mim./ Mas as histórias dos velhos marinheiros e emigrantes,/ Júlios Vernes e Conrads e Londons da minha infância,/ trago-as, sempre vivas, na memória, seguem comigo/ pelos caminhos novos que descubro” (Silveira, 1952: 41).

A memória dos antepassados, dos actos dos emigrantes e marinheiros, está gravada na lembrança do poeta – “(A tua mão desenha no espaço,/ acompanhando a fala descansada,/ a maravilhosa aventura que tiveste)” (Silveira, 1952: 42) –, assim como as histórias – “E lembra aquela raituel/ que um dia virou a canoa/ e matou o rapaz do Corvo” (Silveira, 1952: 44) e é pela voz poética que se dá a ressurreição dos que morreram no mar – “Fosse outra a minha voz,/ e vocês levantavam-se da cova,/ vivos e exactos nos meus versos” (Silveira, 1952: 42). Legitima-se, neste seguimento, uma ilha habitada por Mortos, por aqueles cujos olhos embarcaram na “viage” presos à ilha pelo elo da saudade e da promessa do retorno: “A ilha ficou para lá do horizonte/ com uma lágrima quente de saudade.// Depois…// Nas horas longas da vigia/ Antonho Cristove subiu aos mastros./ Trancou baleias em todos os mares/ – nas águas frias do Ártico,/ no mar quente do Pacífico…” (Silveira, 1952: 44). Há, contudo, outras matérias tais como a defesa da humanidade divina e da emigração à qual se associa o da saudade activa e fecunda. Outras vertentes sociais e políticas da escrita de Pedro da Silveira prendem-se com o apelo à consciencialização, à cilada das falsas promessas políticas e ao combate do medo – onde radica a esperança, o “caminho aberto/ ao querer dos nossos passos” (Silveira, 1952: 62). Porém, a chamada ao chão nativo, lugar da prisão e da evasão do corpo, enfim, a ilha, como tema-núcleo da Poesia, espaço de “coisas belas”, “simples e natural”, “sem ódios nem revoltas”, é um pensamento transversal a esta escrita – “Ergue do silêncio a voz,/ rasga o teu caminho, povo./ Diz tudo o que não foi dito/ desde o princípio de ti,/ o que calaste na sombra/ das noites longas do medo” (Silveira: 1952: 61).

A errância e o apelo do sangue

“Era de barro e cal a tua história/ e inviolada, virgem, te guardava/ o mar nas suas águas sem memória./ - Nenhum eco do mundo aqui chegava!” (Silveira, 1962: 87).

A vertente social e retratista da escrita de Pedro da Silveira está patente na exploração do tema da fome: fome do longe, de outros portos, de outras distâncias e de outras lutas; é, enfim, a fome “de pão” que nos dizeres do poeta motiva o êxodo da «terra firme» e a fuga para o “Oceano”. A saga (a fome) dos marinheiros e emigrantes é visível no desenvolvimento das cidades (“San Francisco”, por exemplo) e nas transformações das metrópoles estrangeiras (os caminhos-de-ferro). Foram ainda os emigrantes ilhéus que atraíram outros povos, que tornaram «a terra brava um paraíso» e, enquanto pioneiros, operaram a mudança por toda a parte. Contudo (e notemos aqui a “função interventiva” da escrita de Pedro da Silveira aludida por B ettencourt (2004), apesar do esforço, a terra que os recebeu não os tratou como seus filhos e o mar da ilha que os impedia de sair é o mesmo que lhes dificulta o acesso ao mundo prometido. Os marinheiros tornam-se, como tal, figuras errantes: “A essa terra que não era a tua/ deste o vigor dos teus braços,/ deste o teu suor/ e o teu engenho. (…)// Agora, fechados os portos à tua entrada,/ já o mar não é caminho aberto de emigrantes,/ o mar não é mais a estrada livre das barcas/ de clandestinos…// O mar…/ (você o disse, Jorge Barbosa)/ é hoje a nossa prisão sem grades” (Silveira, 1952: 53).

Parece óbvio que tanto Pedro da Silveira como Roberto de Mesquita partilham de uma ilha do marasmo. A ilha dos Nomes e dos Numes inscreve-se no imaginário do primeiro, à sua ânsia de perpetuar nas águas e no sangue a marca e os sinais dos que antecederam o poeta e que ainda habitam a casa ilhoa.

Para Pedro da Silveira a ilha é o espaço verde errabundo, volante, dominado pelo tempo da demora, pendular, tempo esse feito de silêncio e privações – “Range o tempo avançando/ ao balanço do pêndulo./ Fita-me, escarnenta,/ a sua rosa de bronze” (Silveira, 1962: 32). A busca do berço, o regresso ao “ruído surdo das ribeiras caindo pelas/ rochas abaixo”, a “freguesia” de nascimento, os “campos de milho”, o “azul das hortênsias” e o “caminho habitual da beira-mar” condensam a dispersão e a restituição à água do poeta que, agora, volta para reassumir, com desafectação, a unidade de si e das “nove ilhas”: “Com um molho de lenha à cabeça, uma rapariga passa/ e olha-me com a naturalidade de quem sabe que voltei./ Um menino conduz as vacas para o pasto/ e, como sempre, os velhos estão sentados na praça// Por caminhos de terra e mar,/ parto e, logo, chego. Estou/ nas cidades e nas vilas,/ em todos os lugares de cada uma das nove ilhas.” (Silveira, 1952: 58). A partida da ilha é encarada como um momento de breve fuga porque o essencial é viver eternamente na ilha, alongando os olhos. Tudo neste espaço é, paradoxalmente, lonjura e limite – “Uma nuvem galopa a estibordo./ Perto./ Inalcançável” (Silveira, 1962: 34). Portanto, na ilha, o tempo passa, mas tudo permanece, incutindo no poeta a dúvida da passagem dos dias e dos anos: “Bravia sombra no mar bravo/ a rocha é negra e negra:/ como a ave do seu nome,/ é negra/– e breve.// Foi há dez anos? ou há três?/ Há quanto tempo aqui não vinha!” (Silveira, 1962: 35).

O entrosamento regional

“Tirem da minha frente esta comida francesa/ e este pão que sabe a giz!/ Tragam-me «lapas d’afonso»,/ vinho de cheiro/ e pão de milho” (Silveira, 1962: 87).

A poesia de Pedro da Silveira leva-o a registar o modo de vida do seu povo em toda a parte, coloquialismos, saberes e sentimentos: “Na praça os homens falaram da beleza do tempo – / Ano como este nunca se viu./ Vai haver muito milho,/ vai ser um ano grande.// (Há quase dois meses o estaleiro vazio/ e não há quem venda um alqueire de grão.)// Na terra as plantas crescem./ Crescem promessas/ nos olhos do povo.// …Então,/ o vento soprou rijo da banda do mar/ e a salmoira caiu sobre a terra como uma chuva de maldição” (Silveira, 1952: 31-32). O poeta alia as ressonâncias regionalistas, insulares, a um pensamento mais profundo, ao questionar o que é a ilha que é, em si, vida, duração, morte e olhar. Pedro da Silveira, tal como Cesário Verde, é um poeta-pintor, retratista de paisagens e de pessoas, errando pelos lugares da visão e da memória, justificando-se o “descritivismo objectivo” apontado por Urbano Bettencourt:

(…) a poesia regista as situações e os gestos de uma vivência marcada pela pequena escala dos acontecimentos quotidianos num tempo que parece suspenso, mas sem perder de vista a memória das contingências históricas, o abandono e o isolamento a meio do Atlântico (B ettencourt, 2004).

Olhar e recordar parece ser o modo de vida de ti Antonho Cristove encostado à sua bengala. Todo o texto («Quatro motivos da Fajã Grande») elabora-se à volta dessa imagem suspensa de uma personagem-vulto de olhos perdidos no mar, com um “passarouco” a planar o céu. Só os “dias de baleia” quebram o feitiço da ilha onde a “vida igual de sempre” se repete no espreitar o horizonte, na absorção, no êxtase e na ansiedade: a ilha precisa do ânimo que esse “sobressalto”, a caça à baleia, implica. Porém, a expectativa de mudança não se concretiza e a placidez e a mornidão “baça” voltam a sufocar os populares: “Mas não há uma vela pelo mar!/ As horas passam, moles, arrastadas…/ A noite vem… Os botes sem chegar! E um choro enche as casas desoladas” (Silveira, 1952: 32).

O mundo dos ausentes

“Que palavras, que sangue,/ que palavra de sangue,/ que sinal de sangue,/ mesmo quase indistinto,/ me prolonga, me inscreve/ (nos marca)/ o nome, a sombra/ sobre a relva/ da Morte?” (Silveira, 1962: 70-71).

Por seu turno, em Corografias (s.d.), o poeta volta a sublinhar a corporeidade do poema, a sua sanguinidade. O poema é o “canto” natural do “homem”, é “sangue habitado”, “pele” e “ossos”; é acto de recusa, assunção do “impuro” porque é a mesma humanidade e possibilidade de liberdade que habita em todas as palavras que leva o poeta a aceitá-las como “sementes” e “sangue”. Pelo menos a parte inicial do livro em análise é dedicada ao destino das coisas simples, à grandeza que reside na inteireza e no mistério inalcançável das mesmas. Estamos perante uma escrita mais subentendível, diluída, menos corpórea: sombras, flores, música, beijos, memória, sangue e morte concorrem para um texto que na sua lhaneza suaviza a “secura deste dia”. A busca do “cerne” dos “ausentes”, no fundo, a temática de uma ilha que o poeta descobre na deambulação pelo mundo – ilha que se inventa e que se perpetua nos “retratos de família” (Silveira, s.d.: 15) – e consequentemente o tema do amor derradeiro são outros tópicos poéticos encontrados. Deparamo-nos com impressões fugazes, olhares rápidos, diáfanos, próprios de uma poesia impressiva (cf. Silveira, s.d.: 8), evocando o ausente – “eu não sei como ele sabia, mas também amo o indecifrável” (Silveira, s.d.: 19) –, o compromisso com o silêncio, com o sentido do frio, do beijo e do olhar que, de forma geral, constam dessa parte inicial, em consonância com uma postura céptica e cautelosa que nos faz lembrar Ricardo Reis e a sua infelicidade resultante da espera por uma manifestação fatal – “tudo como se no tempo/ só habitasse a morte;/ deixai-me – oh sombras! –/ e cumpra-se a alma/ como uma música que/ alegrando-nos dói/ até à última gota do sangue” (Silveira, s.d.: 10).

O tempo e o longe

“Na praça os velhos olham quem vem/ e recordam histórias de tempos passados”
(Silveira, 1952: 30).

A imaginação do poeta extravasa o limite do quarto ou a data do calendário, torna presente o tempo longínquo, justificando-se também em Sinais de Oeste o cuidado em salvar, pelas “letras”, a memória do esquecimento: “Leio-os, e lendo-os refaço/ dentro de mim quanto leio:/ e as letras, oh maravilha! São, vivas, re-vivo tempo,/ já não letras: multidões,/ cidades, portos, caminhos/ que vão de todas, por todas,/ às partes todas do Mundo:/ a vida e a morte jogadas,/ vibrando em mim, lado a lado!” (Silveira, 1962: 20). No segundo dos «Sete romances imperfeitos» a memória do sangue e das raízes, do “Sangue indomado, indomável”, repete-se. O rosto dos presentes e dos vivos reproduz os de outrora, explicando-se, como tal, a persistência do sangue dos navegadores, baleeiros, emigrantes e pioneiros – “Remotos, velhos, remoçados sangues/ do longe aos longes feitos” (Silveira, 1962: 48). O poeta é o mensageiro perpetuador das “fogueiras de sangue desmedidas”. A sua voz é o reflexo da história pessoal e da saga de quantos plantaram países e cidades e correram “sobre o Tempo”. Todos eles encontram na voz do poeta a fixação à sua casa-ilha: “Na minha voz as vozes/ amarguradas de todos,/ sobre o lume do tempo/ nos seus passos queimados!/ Remotos, velhos, remoçados sangues avançando/ e, incontíveis, alastrando,/ unindo-se,/ perdendo-se:// mil sangues: um sangue,/ sua voz: mil vozes” (Silveira, 1962: 53-54). A missão do poeta surge evidenciada no sétimo romance quando afirma: “Desenterro palavras, ergo-as até aos olhos/ e aos ouvidos/ e à sede do cerne./ (…) – Lembro. E só lembrando existo” (Silveira, 1962: 68). A sua preocupação será, portanto, reconstruir pela Palavra poética a marca e a sombra dos Mortos e prolongar a sua memória (Silveira, 1962: 70-71), livrando-os do anonimato das “multidões de mortos”: os Mortos agem no poeta, prolongam-se nele e existem agora: “ – Lembro-os, com ternura,/ familiarmente curioso/ de saber como sentiam,/ como eram” (Silveira, 1962: 68).

As palavras do poeta em «Tarde de Agosto, Oeste» estão impregnadas de tédio e aflição. Não será por acaso que o texto é dedicado a Roberto de Mesquita (assim como «À memória de Roberto de Mesquita») (cf. Silveira, 1962: 37). No primeiro desses textos faz-se referência à “tarde aguada” e ao “exílio”. O poeta anseia por uma transfiguração desta ilha-prisão que lhe faculte alcançar o Além – “Arrasta-se o tempo. É infindável!/ ou parece, este dia./ Se acontecesse alguma cousa!/ Até um naufrágio/ servia./ Mas sem mortos, só para/ quebrar esta/ monotonia” (Silveira, 1962: 24). A morbidez do lugar imprime ao texto uma atmosfera cismante ao gosto da estética simbolista. Porém, esse habitat, apesar da desolação, é o lugar da aproximação do poeta às suas raízes – “ei-la, é esta/ a nossa história,/ a que não coube nos compêndios!” (Silveira, 1962: 56). É assim que o capitão Francisco Augusto, “açoriano de berço”, “comandante de navios”, aparece-nos retratado na sua luta contra o mar – “Até à Califórnia trabalharam nos farms e onde adregava./ Às vezes viajavam escondidos/ nos carros-de-fogo que metiam medo a meu tio António” (Silveira, 1962: 58). Na casa memorial do poeta (a sua voz), perpetuadora de retratos familiares e das “aventuras marinheiras”, das “sete andanças do emigrante”, das “Califórnias dos Enganos”, cabe a identidade eterna (apesar da diluição material da casa-objecto, do seu descaiar) de Laureano, Raulino, Ana Rosa, José Vitorino, Rosa Emília, Maria e António Pedro: “Lembranças que desenterro das poeiras do esquecido,/ por que me vêm, como um laço, ao de cima da memória?” (Silveira, 1962: 62). A casa morta que o poeta faz renascer e perpetuar é a casa dos ausentes, dos que no passado saíram da casa-berço e cujo sangue se espalhou pelos “outros”.

O texto «Nocturno» é particular na ilustração de um lugar habitado pelo “silêncio de cal” e pelas “janelas cegas” (Silveira, 1962: 39), evidenciando que, de facto, o tempo é um elemento condicionante da poesia de Pedro da Silveira. O tempo repete-se, arrasta-se, prolonga-se, torna-se, por fim, “infindável”: “Esperamos/ (seja lá o que for)./ Esperamos…/ desde quando?/ Até quando?” (Silveira, 1962: 25).

Justificando que o tempo é um dos temas de Sinais de Oeste temos o texto «Azorean Torpor». À semelhança do anterior, somos aqui confrontados com um tempo que passa escorrendo, escoando-se, aparentemente sem nada alterar. É o tempo suspenso, cristalizado, que tortura com vagar os que miram o longe.

Cilício e inanição vincam um lugar “Tão deserto de passos”, sonolento, resumido a “pedras” e “ervas bravas”, dificultando a adesão do poeta ao microcosmos ilhéu: “Mole, como a paz do lugar, lentamente/ passeio os olhos em redor/ e longe, pelo mar estagnado.// (…) Tudo começa e acaba exactamente aqui,/ na madorna da tarde sem memória” (Silveira, 1962: 27). O mundo murado, da quietude e da sombra está ainda retratado em «Praia do Fim» e no texto «No cimo do Morro Alto». Mais concretamente neste último podemos reparar que o espaço descrito está fechado em círculo, é um lugar vertical, em “declive”, que obriga o poeta a subir para olhar. Este cenário de sufoco só é perturbado pelo balir das ovelhas e pelo vapor porque ele é essencialmente morte e espanto. Os termos que o poeta utiliza para a ele se reportar são finitos e angustiantes tais como “quietude lisa”, “íntimo oco de um globo”, “redoma azul e prata”, “solidão”, “silêncio”, “encovado” e referem-se a um espaço que propicia o olhar – “A cada hora invento a cor e o hálito/ de ignoradas paisagens” (Silveira, 1962: 44). O poeta (“vivo-morto”) sente-se parte desse cenário, talvez “sobrevivente” de um mundo morto e dominado pelo sonambulismo enfeitiçante da “redoma intransponível”: “Pesa-me, nos ombros e na cabeça, o silêncio. E desce-me, como um líquido peganhento, ao longo do corpo. É um silêncio que se fixa, e ao mesmo tempo móvel – mas tão lento, tão lento!, dir-se-ia que vagarosamente engrossa; um corpo disforme de silêncio” (Silveira, 1962: 30). Em «Intermezzo» o “pasmo triste da noitinha” e novamente o “silêncio suspenso” e a “espera” corroboram a predilecção de Pedro da Silveira pela elaboração de um panorama de isolamento e flagelação: o sujeito que o habita anula-se face à potencialidade da ilha, terrifica-se.

Lembranças vagas dos mortos

“Como isto foi grande, dinâmico, mercantil, aventureiro!/ Homens de todas as raças no porto da Horta./ Todas as línguas e bandeiras/ no porto da Horta” (Silveira, 1962: 78).

De uma forma geral, em Sinais de Oeste o poeta foca lugares que conservam a memória dos Mortos – “E contigo, sem medo,/ em mil navios navega./ Contigo sabe os nomes/ (ressuscitados)/ de mil navios mortos” (Silveira, 1962: 77). Estamos na presença de uma poética dos Mortos ou dos lugares mortos e da existência destes prolongando-se no momento. Lugares, como o Monte Queimado, são inóspitos, lembrando uma “ave melancólica/ vagarosa”, lugares de neblina e de sonolência. Pedra da Vida, Vila das Velas, Angra, Graciosa, Madeira, Santa Maria, a casa do Pilar, o Pico, etc., são, apesar da sua dispersão, lugares de memória histórica, antiga10.07.2007-- #EndDate -->/p>

Retratando esses lugares, o poeta resgata o frenesim dos portos, os contrabandos, os embarques, o desterro, o cruzamento e a interacção de povos e culturas, demonstrando, como tal, que a sua poesia, apesar deste cunho memorial, desenvolve-se, não se cristaliza no tempo, pois, ainda que a sua memória assente em pessoas e lugares ancestrais, espera pelo renascimento no futuro: “Minha cidade ship-chandler!/ já eras pobre quando,/ no teu corpo salgado,/ nesse olhar que ainda adiantas/ para o longe do mar,/ calada me mostraste/ quanto foste e retratas:/ o passado, que esperas,/ em futuro, renasça/ de nem sabes que frotas/ ou esquadras fantasmas…” (Silveira, 1962: 79). Para além disso, e como já referimos, as pessoas também são destacadas: Fernão Alv’res – “e os que vieram após,/ com seu saber de flamengos” – pelo seu trabalho na plantação de “estacas” e “sementes”, Soraia, Massília e Bento Maranna por serem “inventores desvaidosos/ do bom Verdelho do Pico” (Silveira, 1962: 80), e outros (os heróis embarcadiços, anónimos) que fizeram o “milagre” de “mudar em terra as pedras” (Silveira, 1962: 81). Pelo exemplo desses “pioneiros”, concluímos que as ilhas, no imaginário de Pedro da Silveira, servem de palco ao gesto de navegadores e baleeiros, são pontos de passagem, de transformação e de chamamento.

Acrescentemos que esses lugares a que nos referimos são de “barro e cal”, recônditos, mudos e pacientes. Esta predisposição para uma poesia de figuras e de sítios compele o poeta a uma caminhada deambulante através dos Tempos e dos Mortos. Estes passam a prefigurar (a existir) na criação literária, demonstrando o entrosamento daquele na cultura regional e na defesa do local-insular (cf. Silveira, 1962: 87). Isso levaria Urbano Bettencourt no seu estudo, lembrando Édouard Glissant, a falar de uma “poética da relação”:

de todos os Mortos o poeta fixa a “imagem”, os seus feitos e é daí que se refunde e retrocede ao tempo da inocência, ao tempo dos mitos pessoais: «De cada vez que volto/ não volto: re-vivo,/ tenho doze anos./ Maravilhado, re-cresço» (Silveira, 1962: 85) (B ettencourt, 2004).

Porém, não podemos afirmar que a escrita de Pedro da Silveira, fixando-se no passado, se quede por uma representação mordida de saudosismo; pelo contrário, a sua escrita é uma expressão particular de como, no passado morto, no “retrato amarelo”, reside a força do presente e do futuro. Notamos que há um prazer concreto e propositado em recordar e em saudar o tempo ido, vitalizando-o; contudo, mais “útil” a semente que o mesmo plantou no presente: “Se recordo o passado, não é por recordar./ O que recordo, vivo-o, é presente./ Mais, muito mais que presente,/ é, concreto, o futuro.// – E no entanto a saudade é um veneno saboroso./ Mas querer tornar no tempo é não ser viril,/ é sentar-se a jantar com cadáveres à roda” (Silveira, 1962: 108).

No texto «Última vontade», o poeta apresenta-nos uma ilha que é ponto de confluência de paquetes e cargueiros: silêncio, “vales escondidos” e “nuvens imprevistas” são expressões que contribuem para a definição, segundo as palavras de Urbano Bettencourt, da “matéria insular” de Sinais de Oeste (B ettencourt, 2004). A composição em causa expressa uma solidão habitada pela presença das águas, pela (in)finitude que a ilha sugere, pelas casas, mas sobretudo pela “miragem” e pelo desassombramento de heróis errando na memória do poeta, heróis das “Descobertas Impossíveis”, e povoando o silêncio: “contemplaste, curioso e comovido a sua solidão/ de rochas pretas, húmidas, verdosas/ e pequenos lugares onde as casas,/ quais navios varados,/ olham o mar como a pedir-lhe/ caminhos livres infinitos…” (Silveira, 1962: 100). Assim sendo, julgamos que a parte final de Sinais de Oeste coincide com uma poética centrada na ilha, feita de “pedra limosa” e de “puro verde”.

Em «Memento» é claro o apelo à perpetuação das raízes da ilha, à eterna plantação do poeta no seu universo “seco”, à suplantação da mudez e da ausência: “(Um recanto de praia, o cais,/ as casas, povo que fica ou/ diz adeus/ – tudo delido ao anoitecer.// Nunca me deixe a sua imagem!/ Que sempre me persiga, me comova!/ (Guardo comigo, dela, um punhado de terra/ e outras lembranças: cousas inúteis)” (Silveira, 1962: 105-106). Essa ilha aparece ainda em «Soneto sem horizonte». Este é um texto rico em impressões e em que o poeta confessa de forma explícita o “frio” que sente num lugar qualquer, a sua dor relativamente à perdição, ao desgosto e à errância que a “tarde macilenta” suscita, querendo sugerir que a mundaneidade da ilha (ou a itinerância) o transporta para paisagens perdidas (para outras ilhas, diria Bettencourt, 2004), pois é seu “destino errar/ de porto em porto”. A ilha, estando “aqui”, lembra-lhe uma “outra tarde assim, cinzenta, lenta”.

O tempo e a efemeridade

“– Lembro. E só lembrando existo” (Silveira, 1962: 67).

Sendo uma poesia que se debate entre o mar distante, a espera (o espanto, a lonjura), e o “eco que se desprende, e vai/ de monte a monte”, Pedro da Silveira acusa uma escrita que é reflexo de identidades, busca espectral do outro, questionação da ilha que se percute pelo tempo, perdurando na memória. É nessa ambivalência que o poeta se redimensiona, se revê, achando a sua imagem e identidade, descobrindo o sangue na lida de velhos baleeiros e emigrantes – “Mas porquê lembrar-me agora deste primo/ mais que morto, que afogado,/ ausente do meu sentido?” (Silveira, 1962: 59); é ainda nesse eixo que reside a esperança num regresso à casa-reduto da intimidade: “Ah! arraste-me a vida por todos os exílios,/ nos desolados continentes hostis/ ou nas cidades tentaculares e tumultuosas/ – nunca me deixe a tua nítida lembrança,/ vivas tu sempre no meu tino!” (Silveira, 1962: 123).

Acentuemos que Corografias narra a revisitação do poeta aos lugares da memória e dedica-se, uma vez mais, tal como as obras poéticas já designadas, a uma reflexão sobre o tempo que passa, contrapondo-se à cristalização da imagem que o retrato conserva: “Este retrato de um menino/ com um raio de sol aos pés,/ a sua boca admirada,/ seus olhos olhando o vago/ que vai dele ao retratista/ – este menino fui eu” (Silveira, s.d.: 37). O texto «Névoa» é, atentemos, uma ponderação sobre os efeitos do cronos, sobre as mortes que vai causando e o “recordar” e o “deslembrar” que ele implica; é, para além disso, uma abordagem ao desencanto das coisas, à perda do mistério que as caracterizava na infância – “E o cemitério onde fora tantas vezes, mas que só agora era um cemitério – ou o sentido completo da palavra cemitério” (Silveira, s.d.: 40). O lugar ido, entretanto transformado – “Onde era a Vila com suas ruas e casas/ agora é o asfalto do aeroporto./ Onde o Convento ainda a igreja/ e talvez sernalhas e ratos/ onde era a frescura do claustro” (Silveira, s.d.: 64) – constitui uma lembrança activa e presente, um manifesto ontológico da existência dos entes. O passado não corresponde às “flores secas” da saudade, às memórias “arrumadas no sótão”, mas crença na esperança e na semente que se lança em solo actual, comprovando a intenção de querer recuperar os fragmentos das reminiscências avoengas dispersas pelo mundo: “O que lembro é sempre inesperado,/ e por isso acontece, é vivo,/ fresco como a vida começada./ Às vezes dói, como as memórias não” (Silveira, s.d.: 66). Esse diálogo com o homem medular, com uma ilha que roça a maceração e com o presente habitado pelo passado aproxima-nos do pensamento de Urbano Bettencourt:

No seu ponto de equilíbrio, esta dialéctica (radicalmente insular, note-se) entre o “aqui” e o “outro lugar” ou, dito de forma diferente, entre o enraizamento e a errância, traduz-se numa atenção ao mundo e, simultaneamente, numa afirmação identitária, mas uma identidade aberta que recusa o enclausuramento, o próprio e o alheio (Bettencourt, 2004).

Em «Crónica breve da Holanda» a cata de si, do poeta, e o percurso do homem pelos lugares à procura do trilho dos seus antepassados, obriga-nos a considerar que a viagem no tempo empreendida pelo sujeito é, na realidade, um tópico explorado no universo literário de Pedro da Silveira. O contacto humano e próximo com as pessoas, com a pureza e espontaneidade, está na base da descoberta despretensiosa de laços arcaicos, pois todos no mundo poderão ser seus reflexos e as suas raízes. O tema da memória fossilizada, ainda que “vaga” (mas universal), sumida no tempo e no desvanecimento dos retratos, é frequente em Corografias: é a memória suspensa, da “luz esmaecente” do “silêncio” e do “rasto da água” que nos autorizam a descobrir que o tempo “cego”, conquanto mude, não altera o que os olhos fixaram da terra. A itinerância do poeta, a doação a outros lugares e a outras identidades (o “diálogo permanente entre o mundo e a ilha e as diferentes ilhas de que o mundo se compõe”, segundo B ettencourt, 2004), espelha-se noutros textos que testemunham a fixação de aspectos locais de sítios tais como Belém do Pará, Amazónia ou Rio de Janeiro.

A par disto, em «Aos poetas», encontramos o apelo à construção poética e humana da casa (afectiva, antro da esperança e da ânsia de se encontrar nos Outros), que é prolongamento do corpo e habitação do amor; é a casa intemporal, cuidada, amada, sobrevivente à “morte”, feita à medida da dimensão esperançosa do homem e cujos “alicerces” se fincam no “fundamento que em ti achaste”: “Cada janela, cada porta,/ cada quarto e os corredores/ no espaço certo: tudo/ tão certo e próprio como depois/ não te sentires nunca estranho/ na casa que para ti construíste. (…)/ Uma casa/ verdadeiramente a tua casa,/ que construíste e sobreviva/ a todas as tuas mortes” (Silveira, s.d.: 73).

Assim, o mar é para os ilhéus perseguidos pelo sonho e pela ambição meio de salvação, de conquista do outro cais, o das Américas – “E só de pensar-me partindo/ embarco, e, deslumbrado,/ imagino-me chegando às ilhas” (Silveira, 1952: 57).

A poesia de Pedro da Silveira recupera o eco dos Outros, eco que se repercute vencendo o silêncio e a exiguidade/ distância da ilha, alcançando universalidade. É assim que a memória de baleeiros, emigrantes e pioneiros atravessa a história e o localismo popular ilhéu, alastra-se pelo mundo. Esta poesia vital está, portanto, associada ao mar, ao tempo, à ilha sanguínea, mas sobretudo à água (“caminho às avessas”); é para ela que o poeta volta visto que o mar é não só “lonjura” e imobilidade, partida e regresso, sonho e desesperação – “E um navio – um navio verdadeiro, não sonhado –/ atravessando (oh firmeza metálica!)/ a estrada azul do seu destino mercantil” (Silveira, 1962: 117) –, mas também esperança de “um cais no outro lado”. A paisagem marítima destaca-se pelo impressionante pictorismo, pela sua presença e pelo efeito emotivo sobre o poeta: é o mar-espelho o elemento da reintegração do sujeito na “remota esperança”, expediente para vencer a “espera” e o ambiente de “névoa lilás” e verde. O mar é portador de histórias familiares, de intercâmbios; é esse mar-berço que, por ser lembrança e consciência, acompanha o poeta desde cedo, esperando-o no fim da vida – “Sejas tu, assim, amigo Mar,/ no fundo frio das tuas águas cegas,/ com algas e pedras e peixes insensíveis,/ a última cama de paz onde me deite!” (Silveira, 1962: 123).

Bibliografia

Bettencourt, U. (2004), Pedro da Silveira – a escrita e o mundo In O Faial e a periferia açoriana nos séculos XV a XX. Actas do III Colóquio. Horta, Núcleo Cultural da Horta.

Oliveira, Á. (2004), Pedro da Silveira (1922-2003) – um breve perfil. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 13: 75-80.

Silveira, P. (s.d.), Corografias. Lisboa, Perspectivas & Realidades.

Idem (1952), A ilha e o mundo. Lisboa, Centro Bibliográfico.

Idem (1962), Sinais de Oeste. Coimbra, edição do autor.

Idem (1999), Fui ao mar buscar laranjas – 1. Angra do Heroísmo, Direcção Regional da Cultura.

Última actualização a 10.07.2007 Voltar ao topo
10.07.2007