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BOLETIM DO NCH Nº 15, 2006
OBRA DE PEDRO DA SILVEIRA. ENSAIOS. ESTUDOS
(2005) CARLOS ENES, TERRA DO BRAVO. ANGRA DO HEROÍSMO, INSTITUTO AÇORIANO DE CULTURA
  Leocádia Regalo – Escola Secundária José Falcão. Avenida D. Afonso Henriques. 3001-654 Coimbra.

As vivências comunitárias na Ribeira do Fogo, nos anos 50 e 60, servem, de pano de fundo, para fazer sobressair a memória das coisas, do tempo, do lugar, dos costumes, das mentalida des, neste romance intitulado Terra do Bravo. O título, explicado na sua vertente histórica pelo narrador, ao aludir à genealogia de Tio Jerónimo, personagem carismática que se orgulhava do tetravô, um dos bravos soldados do Mindelo, distinguido na luta contra as hostes absolutistas (p. 26), comporta em si ressonâncias etnográficas inegáveis – não fosse um tema do folclore terceirense, assim conhecido e cantado por açorianos, em todas as latitudes – ressonâncias essas que acompanham o leitor até à última página do romance, lugar onde surge uma estrofe jocosa, adequada à situação humilhante por que passa o Presidente da Junta, autoridade cinzenta e arrogante, que persegue os concidadãos, levando junto das eminências pardas salazaristas as informações que hão-de denunciar os que se opõem à situação social e política que se vivia então.

Na abertura da narrativa, lugar privilegiado na significação e construção de relações que o leitor vai estabelecer, ao longo do romance, a personagem central, uma criança, debate-se com a sua consciência no momento da desobriga pascal, que lhe vai arrancar a confissão do pecado que o atormenta: a descoberta da sexualidade. Esta cena inaugural, o incipit da narrativa, marcará inequivocamente o devir da história: perdida a inocência, Morcela sente-se à beira da punição infernal, dentro do seu mundo cercado de fantasmas e de medos, ligados a uma educação religiosa consubstanciada na culpa e no castigo. Tinha pecado contra a castidade, da maneira mais vergonhosa: sentira-se arrastado por amores de capoeira… O padre da freguesia, sobejamente habituado a penetrar na intimidade recôndita e na privacidade dos paroquianos, absolve a criança depois das admoestações em catadupa [que] lhe inundaram o juízo de tal forma que ficou esturvinhado (p. 9).

A noção de pecado instaura-se na consciência da personagem como um rasto colado a cada gesto e há-de acompanhá-lo na defesa do proibido, no decurso das várias instâncias em que se confrontará com a vida. O tempo encarregar-se-á de fomentar a maturação dos indícios de liberdade que paulatinamente se instalam no seu íntimo, aligeirando a consciência dos sustos e receios que povoam o seu carácter imaturo e inexperiente. Morcela vai, assim, crescer num ambiente fechado, concentracionário, pautado por convicções, costumes e tradições ancestrais que modelam os temperamentos e comportamentos pacatos da gente da Ribeira do Fogo. O escritor recupera episódios exemplares que testemunham a mentalidade do ilhéu rural, criando uma galeria de tipos pitorescamente desenhados, onde uma certa estratificação social e psicológica acaba por ser traída na teia das relações comunitárias. Apesar de o registo histórico e o estilo literário se distanciarem na sua génese, não se pode esquecer o contributo inequívoco que a literatura presta na preservação da memória de uma época, num determinado lugar.

Terra do Bravo ilustra, deste modo, conflitos ideológicos e políticos vividos nas ilhas, nas longas décadas de regime salazarista, recorrendo o escritor a fontes oficiais e oficiosas para organizar o lastro de referências que servirão de suporte à recriação dos acontecimentos narrados: dos presos políticos que, nos anos 30 e 40, estiveram nas masmorras do castelo de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo, às influências movidas pelo Governador Civil da época, junto das instâncias governativas de Lisboa, no sentido de melhorar as condições mínimas de vida das populações das Ilhas Adjacentes dos Açores, passando pelas escaramuças da Justiça da Noite, pelo ensino nas escolas do Estado Novo ou pela reacção dos órgãos de informação açorianos ao assalto ao «Santa Maria», a narrativa conduz o leitor pelos meandros de uma história que conjuga uma intriga simples – as vivências de uma família do meio rural, em que o protagonista se move, acompanhando pacata ou convulsivamente as fases da sua maturação, que atravessa os ritos de iniciação, as pri meiras experiências sexuais e amorosas, os conflitos familiares causados pela liberdade que vai sendo conquistada, a preocupação com a maledicência, perante situações legítimas de afirmação coarctadas por costumes obsoletos – com a crónica de episódios típicos, burlescos ou pitorescos, que denunciam o espírito dos adeptos do Salazarismo, preocupados em manter ciosamente a situação vigente, assim apresentada pelo narrador:

Naquela terra de gente acomodada, de gente feita de paciência, quase ninguém se preocupava com a liberdade. Só quem vive necessita dela e quase todos eles vegetavam, presos a insignificâncias, atados pela mesquinhez (p. 31).

O pai de Morcela, tio Jerónimo do Poço, é a personagem que, imbuída de uma consciência política desabrochada no serviço militar em convívio com Cardoso, antifascista simpatizante da Revolução Bolchevique, vai estar contra o poder instituído, sendo fulcro das suspeitas do Presidente da Junta, que o considera “um comunista perigoso”, por ter sido capaz de divulgar a ideia, junto da população, aquando da inauguração da electricidade na Ribeira do Fogo, de que as iniciais TMP, alusivas ao nome do Governador Civil, que encimavam os arcos ornamentais da festa, significavam “Temos Mas Pagamos”. Ouvia assiduamente os noticiários na rádio e, sorrateiramente, deslocava-se a Angra, onde trabalhava Cardoso, para se manter informado sobra a política da oposição democrática. Mais tarde, quando o filho Augusto parte para a guerra em Angola, revolta-se interiormente, não suportando a ideia de o perder em combate, na defesa de causas que não advoga. Este regressa são e salvo, apesar das sequelas da guerra que o deixam marcado para sempre. Mas, o seu ajuste de contas com o Presidente da Junta há-de fazer-se num Domingo de Bodo.

Tendo convidado o amigo Cardoso para almoçar e sendo visto a passear-se com ele na Praça, foi logo motivo para que o Presidente da Junta os espiasse, quando, regressados a casa, calmamente conversavam sobre política. No episódio final do romance, o narrador ironicamente sublinha as aflições passadas por esta personagem sem nome, à beira de cair no poço do quintal de Tio Jerónimo, num percalço inevitável da sua missão de informador. O cómico de situação é sobejamente claro, sobretudo nos diálogos travados entre os dois amigos e o pássaro preso na gaiola, finalmente submetido à tortura merecida. Vivendo ao lado de um pai inconformado com a situação política e de uma mãe-galinha que detém a autoridade na família, Morcela paulatinamente vai crescendo naquela “freguesia do monte” em que o progresso tarda a chegar.

Na tourada à corda, submete-se ao ritual de iniciação que o vai apetrechar com a bravura dum terceirense de gema – Quando fosse preciso, já estaria treinado para espetar os cornos nos flancos da vida (p. 23). Passa pela escola do Estado Novo, onde o professor Noronha, estereótipo da docência austera num país fechado no seu umbigo (p. 36), o ensina a ler e a escrever, sofrendo com os castigos corporais infligidos a ele e aos colegas, sempre que as tarefas sacramentais (abecedário, números, cópia, tabuada, ditado, redacção e problemas) não eram adequadamente executadas. Nos momentos de liberdade, depois da escola, como todas as crianças, entrega-se ao roubo da fruta, nos quintais mais apetecíveis, sendo castigado pelo Padre Tadeu com valentes puxões de orelhas. Só mais tarde, com a professora Leonor, jovem dotada para a profissão, ganha gosto pela escola, conseguindo apresentar-se na Praia ao exame da quarta classe, facto marcante na sua infância também por ter constituído a primeira oportunidade de sair dos limites da Ribeira do Fogo.

Segue as pisadas do pai como lavrador e vai passando os dias da sua existência sem grandes tumultos, enraizado numa comunidade em que as mentalidades se medem pela coscuvilhice e pela maledicência, sobejamente praticadas por Francisquinho Fulicoques, intriguista e beato, e por tia Luísa, informadora servil do Dr. Ávila, astucioso advogado, partidário da União Nacional, que amiúde visitava a freguesia.

O narrador, ao enquadrar o protagonista nas vivências que sedimentam a sua socialização, fá-lo passar por acontecimentos emblemáticos que marcam o percurso habitual, nos anos 60, do adolescente e jovem do meio rural. Recorre, assim, a uma crónica de costumes, onde são apresentadas, na sua genuinidade, a tradição e a cultura popular açorianas, em quadros pitorescos a que não foi alheio o cunho afectivo dos relatos. As danças de Carnaval, os rituais de benzedura para tirar o “cobranto”, as festas do Espírito Santo na sua dimensão religiosa e profana, o teatro das comédias são exemplos de memórias revividas que, por si só, atestariam a vertente etnográfica que o romance encerra. Interagem com estes episódios de âmbito regionalista outras vivências aliadas à inovação e ao progresso, que só os anos 50 e 60 trariam aos habitantes das ilhas.

A instalação da electricidade na freguesia origina a aquisição de bens de consumo que modernizam os lares dos mais favorecidos, caso da família de emigrantes que regressam ao torrão natal, podendo então desfrutar da comodidade que tinham experimentado em terras da América. A rádio começa a ser um meio de informação proeminente, so bretudo para Tio Jerónimo que, com ela se vai politizando; e também de divulgação da música, do desporto, da publicidade. Quem não se lembra dos programas da cantora Maria Pereira, patrocinados pelas tintas Robbialac, ou dos folhetins radiofónicos acompanhados da publicidade ao detergente Tide, que prendiam as famílias à volta do aparelho de rádio? É neste sentido que o leitor – e não só o açoriano – recupera fatias de vida destas décadas, identificando a realidade que as personagens vivem e o seu envolvimento. O escritor consegue preservar uma memória já remota, mas que ciosamente guardamos, como inscrição das nossas raízes num mundo a abrir os olhos para a grande viragem que os anos 60 iriam fomentar. A emigração é também temática presente, numa intriga secundária que se desenvolve à volta da família de João Caracol.

Contrariando a tendência comportamental do ilhéu (o desejo de aventurar-se em terras distantes, partindo para fugir ao isolamento da ilha), este homem regressa às origens por não ter sido capaz de ultrapassar os conflitos gerados entre ele e o filho, que queria viver a juventude em total liberdade. Em desavença com Luciano, parte com o coração destroçado, trazendo mulher e filha. Vêm habitar uma casa reconstruída, instalando nela o conforto americano trazido na bagagem. João Caracol quer dar à filha uma educação mais ajustada aos seus padrões morais e deseja que Lucy case com um filho da terra. Apesar de manifestar alguns sinais de desafogo económico, cria falsas expectativas relativamente ao seu enquadramento social. Decepcionado, vive na pacatez quotidiana, contemporizando com o curso dos acontecimentos, em relação a Lucy, que tendo sido educada nos Estados Unidos e mostrando-se uma rapariga desinibida e “moderna”, estranha aquele meio tão fechado e é acossada pela tristeza e pela depressão. Não se conformando com a mentalidade dos pais que a queriam impedir de ser livre e de se empregar, acaba por impor a sua vontade, como mulher determinada a lutar pela sua emancipação; emprega-se na Base Americana das Lajes, compra um carro e conduz, namora com um colega de trabalho.

O pai contorna estas vicissitudes com a sensatez que não conseguira ter com o filho, refugiando-se no cerrado com os bezerros, embora sinta os ouvidos a chiar com o falatório da Tia Luísa. Na Terceira, a agricultura cedia lugar à criação de gado bovino e, assim, o emigrado investe os dollars na lavoura, refazendo com honradez a sua vida na ilha. Tia Luísa é uma personagem tipo, à boa maneira queirosiana. Bordadeira e solteira, a sua janela torna-se o observatório das almas do lugar. Embalada num sonho de juventude que a fizera cair nos braços do Dr. Ávila, compraz-se em espiar tudo o que acontece na vizinhança, entregando-se deliciada à coscuvilhice mórbida, servida por uma falsa moral, puritana e beata. Como informadora, presta um precioso serviço ao Dr. Ávila, que vai sondando as reacções da gente da Ribeira do Fogo sobre o governo e a política, nas suas visitas frequentes a esta mulher. Funciona também como intermediária, pois dá conta, ao advogado, das brigas familiares por causa das partilhas, o que lhe vai proporcionar o acréscimo de clientela. Ainda dentro do intriguismo e da maledicência, tão próprios dos meios pequenos, o narrador traz-nos à ribalta um tipo social que, ao longo da narrativa, surge como uma caricatura mefistofélica, a um tempo repulsivo e apelativo, na sua figura de palhaço de circo misturado com mulata sambista.

O sacristão Francisquinho Felicoques, homossexual tolerado e bem integrado na freguesia, dedica-se à igreja e a Deus, exercendo uma missão catequética que toma foros parenéticos nas suas palestras hagiográficas. A vida da freira Maria dos Anjos é narrada com arroubos místicos, na intenção de convencer os jovens das virtudes da santa. No entanto, Alfredo, o amigo de Morcela, que não era homem para engolir lições de moral, mantém-se incrédulo e é levado a concluir: – Se aquela era santa, eu sou um anjinho. Ela estava mas era amigada com o padre (p. 106).

Amante de conluios e intrigas, não perde a oportunidade de influenciar o Padre Tadeu contra os paroquianos, gozando saborosamente as desfeitas que sorrateiramente lhe vai fazendo, numa atitude de velhaco. Mais pitoresco ainda é o episódio em que Francisquinho presta ajuda a Alfredo-Nica-na-Velha. Este, ao tropeçar num balde de folha, depois de uma cena de voyeurismo erótico, faz um barulho tal que assusta a professora Leonor e acorda a vizinhança. Safa-se com os cães a ladrar, torce um pé ao saltar do quintal e cai contra o muro, não podendo andar com dores. Depara-se-lhe o sacristão, para ajudá-lo. O narrador refere o antagonismo de reacções de ambas as personagens: Era a última pessoa por quem Alfredo gostaria de ser socorrido. Poucos dias antes, chamara-lhe naião, na sequência de uma abordagem menos con-forme à sua ética. E, mais adiante, acentuando o cómico de personagem:

Francisquinho nunca alcançara tanta felicidade na vida. Finalmente, conseguia abraçar aquele peito de homem a sério, todo musculado e a cheirar a sémen que tresandava (p. 94). É neste clima de recriação evocativa de uma realidade confinada a um tempo e a um espaço que Carlos Enes urde a tecitura das estórias, recorrendo a um narrador cúmplice com as per sonagens e com as situações, detentor de uma omnisciência assumida, a que não são estranhos testemunhos, relatos e versões dos acontecimentos, por forma a conferir autenticidade a comportamentos bem característicos do meio rural terceirense que, por vezes em traços irónicos, é revelado na sua nudez intrínseca. O talento do escritor repõe as coisas nos seus lugares. Entramos neste mundo com o à-vontade próprio de quem reconhece as personagens e participa dos pequenos grandes dramas do quotidiano de uma comunidade. Relembramos casos, cenas, ocorrências. Acompanhamos a vida aparentemente passiva das gentes da ilha, seguindo com as personagens deste mundo rural nas ciladas da vida, entendendo os seus medos e cobardias, a sua peculiaridade, afinal tão justificada pelas condicionantes da insularidade. Convivemos com os preconceitos sociais e políticos dos naturais da Ribeira do Fogo, confrontamo-nos com a sua mentalidade que dificilmente pode ser abalada, mas também com a coragem que guia alguns, os bravos, que ousam transpor os limites das situações impostas, na busca de uma forma de viver em que o sentido da justiça social e a defesa da honradez colectiva se instaurem como valores a preservar.

Este romance constitui, assim, um registo vivo de memórias de um escritor que, tendo vivido os anos 50 e 60 na ilha Terceira, como criança e como adolescente, cria uma narrativa impregnada de um conhecimento experienciado das coisas, aliado a um gosto inequívoco pela etnografia e pela historiografia das suas raízes. Tratando-se de uma obra de maturidade afectiva e intelectual, ela revela uma desenvoltura literária que se prende ao realismo social, marcado nas opções narrativas e nas temáticas abordadas, contracenando com o conjunto de obras que continuam a alargar o espectro da literatura de significação açoriana.

Leocádia Regalo
Novembro de 2005

Última actualização a 10.07.2007 Voltar ao topo
10.07.2007