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BOLETIM DO NCH Nº 15, 2006
OBRA DE PEDRO DA SILVEIRA. ENSAIOS. ESTUDOS
Onésimo Teotónio Almeida
Pedro da Silveira: uma homenagem em três andamentos
  Índex
Sumário
Summary
Introducao
1. A presença de Pedro da Silveira nas gerações que se lhe seguiram
2. A ilha, Pedro da Silveira e o seu mundo
3. Pedro da Silveira, inacabado e inesgotável
Bibliografia
  Almeida, O. T. (2006), Pedro da Silveira: uma homenagem em três andamentos. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 39-49.

Sumário: Pedro da Silveira foi uma figura multifacetada que influenciou as gerações açorianas que lhe seguiram sobretudo por se ter assumido como ilhéu e ter tentado interpretar poeticamente a experiência ilhoa a partir da sua remota ilha das Flores, exemplo prototípico de insularidade abandonada à geografia. Mas foi também um poeta universal que escreveu sobre a mais variada temática da condição humana. Além disso foi um erudito enciclopédico sempre pronto a partilhar a riqueza das suas informações com quem lhas solicitava. Essas três facetas são recordadas nestes três textos.
  Almeida, O. T. (2006), Pedro da Silveira: A tribute in three movements. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 39-49.

Summary: A multifaceted figure, Pedro da Silveira influenced his younger generation of Azorean writers mainly for having identified himself as an islander and for having attempted a poetic interpretation of the island experience. He did that from his native island of Flores, a prototypical example of an insularity abandoned to geography. But he was also a universal poet who wrote about many facets of the human condition. In addition, he was a scholar, always ready to share his wealth of information with whoever approached him. These three dimensions are evoked here in these three short pieces.
  Onésimo Teotónio Almeida – Brown University – Department of Portuguese and Brazilian Studies – Box 0 – Providence, Rhode Island 02912 – U.S.A.
  Palavras-chave: literatura açoriana, poesia, neo-realismo, açorianidade, ilha, insularidade, identidade, erudição, história cultural, experiência luso-americana, correspondência literária. Key-words: Azorean literature, poetry, neo-realism, Azoreanness, island, insularity, identity, erudition, cultural history, luso-american experience, literary correspondence.

Introdução

Convidado a participar nesta homenagem a Pedro da Silveira, optei por um triplo registo. O primeiro é simplesmente o texto lido na sessão de homenagem ao poeta e erudito florense, promovida pelo Núcleo Cultural da Horta em Santa Cruz das Flores, na presença do poeta, aquando do III Colóquio “O Faial e a Periferia Açoriana nos Séculos XV a XX” (2002). Precedi a sua leitura de uma série de considerações pessoais sobre a figura complexa de Pedro da Silveira, e fi-la seguir de alguns dos meus preferidos poemas do homenageado. Aqui fica apenas o texto lido.

O segundo é o texto que, com leves alterações, a pedido do Jornal de Letras, de Lisboa, escrevi aquando da morte de Pedro da Silveira, publicado a 16 de Abril de 2003.

O terceiro é uma breve evocação do erudito que, dotado de uma memória excepcional, arquivara uma informação incalculável que partilhava com todos aqueles que o abordavam, e que está espalhada hoje por milhares de cartas.

1. A presença de Pedro da Silveira nas gerações que se lhe seguiram

Ouvi falar de Pedro da Silveira pela primeira vez da boca de José Enes, que tanto me ensinou nos meus verdes e impressionáveis anos. Observador dos meus atrevimentos juvenis, achou que, como pedagogo, deveria procurar conduzir-me, canalizando os meus interesses para áreas formativas. Porque acreditava que os jovens deveriam ser impregnados do espírito dos clássicos, se por acaso quisessem vir um dia a escrever decentemente, meteu-me nas mãos Rodrigues Lobo. Esforcei-me em vão. Não conseguia desfrutar ali nenhum prazer de leitura. Eu nascera numa freguesia (não me atreverei a dizer “aldeia” diante do purista da linguagem açórica que é Pedro da Silveira (1), mas não era a corte na aldeia que me seduzia. O professor imaginou-me mais capaz do que eu era de facto. Tentou então os açorianos. Nunes da Rosa foi o primeiro. E eu entusiasmei-me deveras com os contos de Gente das Ilhas, e depois com Pastorais do Mosteiro. Logo a seguir, deu-me a separata de Pedro da Silveira corrigindo alguns deslizes do livro Um Mês de Sonho (em que José Leite de Vasconcelos registava a sua viagem aos Açores na década de vinte), bem como A Ilha e o Mundo, que me foi um deslumbramento. Mais tarde voltei a encontrar o poeta em Sinais de Oeste, na mesa de António Andrade Moniz, então no Seminário de Angra e hoje professor na Universidade Nova, quando escrevia uma recensão para a revista Atlântida. Pouco tempo depois eu descobria Raul Brandão e, não sei exactamente quando, Nemésio e Roberto de Mesquita, uma constelação de autores que, sempre pela mão de José Enes, que a todos ia enquadrando na sua visão dos Açores e de Portugal, me formou o paradigma cultural dentro do qual passei a mover-me. De entre os que desde logo mais me tocaram, terei de mencionar Luís Ribeiro e os seus Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade, que o Instituto Açoriano de Cultura benignamente nos ia fazendo chegar às mãos em fascículos que eu assinava no Seminário de Angra, quando tinha catorze anos (2). O pequeno texto «O açoriano e os Açores», de Nemésio e, mais tarde, o seu ensaio fundamental «O poeta e o isolamento: Roberto de Mesquita», publicado em Conhecimento de Poesia e editado no Brasil (Nemésio, 1958: 167-191). Só bem mais tarde viria eu a descobrir os estudos antropológicos de Arruda Furtado e os ensaios de história literária açoriana de Eduíno de Jesus. Quer dizer, na constelação paradigmática de autores açorianos que formataram a minha visão dos Açores e, de certo modo, do mundo, figurava Pedro da Silveira. É difícil explicar o porquê do meu fascínio pela poesia de Pedro da Silveira se eu não conhecia as Flores. Para poemas como «Dia de Vapor» ainda encontrava eu elementos familiares nas visitas mensais do Carvalho Araújo, alternadas com as do Lima, atracados à distância na baía de Angra, e nas idas e vindas da lancha levando também a bordo os angrenses que iam desmonotonizar-se umas horas no bar da primeira classe, à semelhança do que nos narra o magnífico poema de Pedro da Silveira. Com os «Quatro Motivos da Fajã Grande», deveria eu talvez identificar-me menos. Mas não. Eles surgiram-me como radiografia de um estado de alma: o marasmo sem horizontes da vida insular, ou pelo menos da vida de grande parte da população dos Açores para quem o barco na distância era a única saída, a adivinhar-lhe, à proa, / Califórnias perdidas de abundância, no belo verso do epigramático poema «Ilha».

Eu desconhecia totalmente o que fosse o neo-realismo e nunca encarei os poemas de A Ilha e o Mundo como pertencendo a qualquer corrente literária. Para mim eram simplesmente a expressão da corrente de consciência que começava a agarrar-me como ilhéu despertando para as realidades do mundo no dealbar dos anos sessenta. Após este breve intróito como que a legitimar a minha ligação à obra de Pedro da Silveira (e a minha presença aqui), passarei agora a ser menos umbilical, alargando esta retrospectiva ao impacto de Pedro da Silveira sobre a minha geração. Antes dela, aliás, a presença de Pedro da Silveira já se fizera sentir no grupo Gávea, muito embora um excelente poeta como Emanuel Félix tivesse optado por um registo poético quase nos seus antípodas. Atrevo-me no entanto a afirmar que, depois de Pedro da Silveira, quem não quisesse repeti-lo teria de seguir por trilhos bem diversos.

Santos Barros e Carlos Faria no suplemento «Glacial», Álamo Oliveira no seu percurso poético peculiar, ecoaram de algum modo a existência de A Ilha e o Mundo. Os convulsivos anos da década de setenta, espalhando-nos a todos pelos quatro cantos do globo, vieram apenas fazer recrudescer o nosso interesse pelas ilhas, pelas suas idiossincrasias, pelas marcas de insularidade que todos leváramos na mala de bagagem. João de Melo, Cristóvão de Aguiar, Vasco Pereira da Costa, J. H. Borges Martins, Daniel de Sá, Fernando Aires, Marcolino Candeias, Eduardo Bettencourt Pinto, e todos quantos se interessaram verdadeiramente pelos Açores como espaço cultural com uma marca identitária forte, tiveram sempre, directa ou indirectamente, Pedro da Silveira como referência importante, mesmo quando para dele se demarcarem. A crítica literária, os estudos sobre a açorianidade, que então começaram a proliferar dentro e fora do arquipélago, passaram infalivelmente a citar poemas seus ou a inscrevê-los como epígrafe de ensaios, ao lado de outras de Vitorino Nemésio e do simbolista Roberto de Mesquita, este também florentino, descoberto postumamente por Nemésio e posto a circular pelo próprio Pedro da Silveira (o seu Almas Cativas saiu na Ática em 1974, coordenado por Pedro da Silveira, com prefácio de Jacinto do Prado Coelho e comentários de Marcelino Lima). Vejam-se os escritos de José Enes, José Martins Garcia, Luís de Miranda Rocha, Eduíno de Jesus, Vamberto Freitas, Adelaide Baptista, Álamo Oliveira, Carlos Faria, Urbano Bettencourt, Maria Teresa Marques, Victor Rui Dores, Frank Fagundes, Diniz Borges, Lisa Godinho, Luiz António Assis Brasil e seus estudantes no Rio Grande do Sul, no Brasil, as teses que por aqui e por ali foram surgindo e – por que não mencionar? – os meus próprios escritos.

Dir-se-ia que o poema «Ilha», a que atrás aludi em paráfrase, se tornou o mais citado poema insular, uma definição clássica de ilha, objecto de minuciosas análises. Uma delas foi elaborada pelo Professor George Monteiro, que até à aventura da tradução dos poemas de The Sea Within. A Selection of Azorean Poems, editada pela Gávea-Brown em Providence, nada conhecia da poesia açoriana. Interessou-se verdadeiramente pelos versos de Pedro da Silveira. Num pequeno estudo publicado na revista Atlântida em 1979 – «Os Açores de John Updike e de Pedro da Silveira», o crítico literário luso-americano, professor de Literatura Americana na Brown University, comparava o referido poema «A Ilha» do poeta florense com o poema «Açores», que o famoso escritor americano escrevera a bordo de um transatlântico ao atravessar os Açores a caminho

da Europa. George Monteiro contrasta os dois poemas mostrando que Updike “capta a essência dos Açores vistos segundo a perspectiva do turista que apreende, de fora, a realidade das ilhas.” (…) “O poeta-turista fecha, assim, um silêncio sobre o que poderá ser a vida de quem habita tais paragens.” (Monteiro, 1979: 7). Em contrapartida, Pedro da Silveira capta num poema conciso “a nota de vida que falta no poema de Updike, naquela ‘falta’ de gente a habitar as ilhas e que pode estar implícita nas imagens associadas a ‘à deriva’ e à crescente ‘distância’” (Monteiro, 1979: 7).

A atrás mencionada edição da antologia de poesia açoriana The Sea Within permitiu que os poemas de Pedro da Silveira pudessem viajar para outros mares. Assim, uma das mais conceituadas revistas literárias norte-americanas, The Swanee Review, publicou no seu número mais recente um ensaio intitulado: Marginal Notes: An Islander’s View, da autoria de Tony Whedon. O autor, professor de Literatura Americana numa universidade da Nova Inglaterra, desde a infância residente (parte do ano) numa das ilhas do Maine, descobriu algures The Sea Within e ficou impressionado com os poemas de Pedro da Silveira nela incluídos. Quis conhecer mais da sua poesia e, por isso, contactou-me. Tentou ler outros poemas em português e conseguiu aperceber-se de que lhe interessariam bastante. Pediu-me que alguém os traduzisse. Bati de novo à porta de George Monteiro que aceitou o desafio.

O resultado é um primoroso ensaio em que Tony Whedon analisa os poemas de Pedro da Silveira a par de escritos de autores como Joyce Carol Oates, Elizabeth Bishop, os gregos Odysseus Elytis e Georgios Seferis, Wallace Stevens, Milton, James Schuyler, Sandra McPherson, John Fowles e outros. Sobre os poemas de Pedro da Silveira especificamente, afirma a dada altura terem “alguma da espacidade (spatiousness) e monumentalidade” que ele encontra nos gregos Odysseus Elytis e Georgios Seferis (por sinal, ambos prémios Nobel de Literatura), embora os de Pedro da Silveira tenham algo da frieza do Atlântico Norte “nas entrelinhas e no seu sentimento directo” (Whedon, 2002: 127). Mais adiante escreve:

“O poema expressa a inconsciência, o não pensar que tem origem no render-se involuntário do eu às forças inelutáveis da natureza, um render-se fora do comum – talvez mesmo não-existente – noutra poesia modernista.
(…)

Eu li naïvemente estes inesperadamente refrescantes poemas nesta ilha do Maine que partilha de alguma da melancolia (gloominess) dos Açores. O torpor, a sonolência da poesia de Pedro da Silveira molda-me o meu próprio estado de espírito e o modo como eu contemplo o rio hoje enquanto, por outro lado, o nevoeiro do Maine cobre e invade os poemas de Pedro da Silveira, ensopando-os nesta mesma solitude.” (Whedon, 2002: 128).

Num outro texto intitulado Pedro da Silveira, Poetry for all seasons, George Monteiro compara o olhar implacável do poeta ao de Henry David Thoreau (o autor de Walden e do famoso ensaio sobre a desobediência civil), que Robert Frost, poeta da Nova Inglaterra, considerava mais “the most noticing person who ever lived”. Monteiro elogia “o estilo chão e directo” da poesia de Pedro da Silveira na expressão de certos “noticed moments”. De um deles («Acabado, mas não tanto»), diz ser, no seu espírito, “tão antigo como a poesia dos gregos e tão moderno como a poesia dos ainda desconhecidos poetas de amanhã” (3). Poderia continuar citando outros leitores de Pedro da Silveira e outros dados sobre o impacto da sua obra.

Quedar-me-ei todavia por aqui. Queria no entanto terminar não com palavras minhas, mas prestando homenagem ao poeta nas suas próprias palavras. Desnecessário será, contudo, incluir aqui os poemas lidos. Registo apenas a frase com que precedi a leitura do poema «Acabado, mas não tanto», pois queria com ela simbolicamente concluir esta minha homenagem a Pedro da Silveira: este poema é a antítese do fatalismo, do marasmo, da solidão que inundava a ilha do poeta nos anos quarenta, ela é uma afirmação de vida, de vigor, de finura de espírito, ainda e sempre a revelar a mão de mestre de um senhor do verbo.

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(1) Alusão à repulsa de Pedro da Silveira pelo uso do termo e de outros vocábulos supostamente não-açorianos. Sobre o assunto escrevi, aliás em discordância do excessivo purismo linguístico açórico do erudito, uma crónica na revista LER que incluí depois no livro Viagens na Minha Era (Lisboa, Temas & Debates, 2001), pp. 111-112.

(2) Foi o primeiro livro da série “Insula” publicado pela revista Atlântida, do Instituto Açoriano de Cultura.

(3) Texto lido numa sessão de homenagem a Pedro da Silveira promovida pela Casa dos Açores da Nova Inglaterra em Stoughton, Massachusetts (comunidade onde vivem muitos florentinos), em Outubro de 2001 (cf. este Boletim páginas 51-57).

2. A ilha, Pedro da Silveira e o seu mundo

De Pedro da Silveira dizia Natália Correia que tinha uma língua viperina. Era marca de todos sabida e por não poucos receada. Um dia Lúcia Lepecki, numa roda literária, vendo que ao sair alguém da mesa ele desatava em corte interminável da sua casaca, interrompeu-o: «Puxa, Pedro! Não se pode ‘tar longe de você!». Mas mais aguda ainda era a sua memória, inesgotável fonte de notas de rodapé biobibliográficas. Abria os seus ficheiros sem reservas. Bastava pedirem-lhe. Desbobinava de imediato. Na Biblioteca Nacional era uma biblioteca à parte. E nas cartas revelava cortesia e lhaneza admiráveis, mesmo surpreendentes para quem testemunhava a sua presença muitas vezes pouco simpática pela fala compulsiva e impertinente.

Não conhecida de muitos, a sua poesia merece deveras o apreço de quem a conhece. Nos Açores, A Ilha e o Mundo (1952) é um clássico portentoso. Quando surgiu foi um terramoto nas letras e nas mentes. Houve mais: Sinais de Oeste (1962), ambos felizmente tornados de novo acessíveis em Fui ao Mar Buscar Laranjas, o Livro I da «poesia reunida» que a Direcção Regional da Cultura dos Açores editou. Poemas Ausentes (1999), publicado em Santarém pela O Mirante, ainda circula por aí. Traduziu poetas de cuja poesia ficou amigo.

Deixa um espólio de valor incalculável. Em dois programas de TV comigo enumerou-me os projectos que tinha entre mãos, a maioria deles há longas décadas, e que sentia urgência em terminar: o Romanceiro da Ilha das Flores, uma História Breve da Literatura Açoriana, uma Antologia do Conto Açoriano, uma colectânea dos seus próprios contos, muita poesia dispersa para organizar. Notas e apontamentos sem fim porque nunca dava um trabalho por terminado. Faltava sempre alguma vírgula num algures ainda a descobrir. Por isso era corrosivo perante as imperfeições que achava nos outros. Tinha há dois anos para me enviar as respostas a uma entrevista. Faltavam certas datas. Prometera também poemas. Não conseguia encontrá-los nos caixotes. E um conto. Queria revê-lo.

Deixa-nos ainda uma lista longa de histórias. Aconteciam sempre à sua volta e em redor do seu verbo. Perguntei- lhe uma vez em que estava a trabalhar. Traduzia para português o romance de uma mulher açoriana. Em que língua está então escrito? – inquiri curioso. A resposta veio mordaz: Em micaelense!

«Acabado, mas não tanto» era um dos seus belos poemas da velhice. Inacabado ficou, porque para ele nada tinha fim. A obsessão com o rigor levou-o a publicar pouco, e daí ser hoje para muitos uma ilha ainda desconhecida. Mais do que isso: uma preciosa mina.

3. Pedro da Silveira, inacabado e inesgotável

Guardo em meus ficheiros um dossier com muitas notas que fui tomando de conversas com Pedro da Silveira. Elas são informações curiosas (curiosíssimas muitas), frases inesquecíveis, ditos sarcásticos, histórias únicas que revelam a sua verve nunca controlada, e nem sempre se comportando da melhor maneira, como todos sabemos. Era sua trademark ser irreverente, inconveniente e devoto da lusitaníssima e ancestral tradição que remonta às cantigas de escárnio e maldizer. Um dia talvez consiga reunir todas essas histórias numa longa crónica, procurando recuperar o homem tal como o tenho arquivado em duas entrevistas que lhe fiz – duas para a série televisiva transmitida em 2001 e 2002 pela RTP-Açores e RTP-Internacional e outra para a série “Daqui e da Gente”, no Portuguese Channel, de New Bedford, Massachusetts (1). Aqui e agora, gostava apenas de referir a inesgotável fonte de informação que Pedro da Silveira era. A ele recorriam inúmeros investigadores procurando descobrir quem seria um tal nome que emergia de uma página, ou quem seria o autor de um obscuro texto referido por um desconhecido numa qualquer publicação de circuito restrito. Pedro da Silveira, ou respondia imediatamente, valendo-se de uma memória fora de série, ou não descansava enquanto não deslindasse o caso e se pusesse a escrever uma longa carta a quem lhe fizera a pergunta.

Como se de propósito, estava eu a terminar a revisão deste texto quando me chegou do Pico o segundo volume de Figuras e Factos, de Ermelindo Ávila (2005), por gentil oferta do autor. Num pequeno texto intitulado “Pedro da Silveira e Fernando Castro”, Ermelindo Ávila lembra que, em capítulo anterior, prometera voltar a dizer algo sobre a personalidade do seu conterrâneo Fernando de Azevedo e Castro. Evoca de seguida um serão com Pedro da Silveira num encontro de escritores açorianos nas Velas, S. Jorge, em que essa personagem viera à baila e sobre quem Pedro da Silveira falara abundantemente. Ermelindo Ávila prossegue assim:

“Mas, o mais interessante é que, no final do ano findo, recebi uma carta /de Lisboa/ de Pedro da Silveira que principia por recordar a nossa fala em S. Jorge sobre o meu conterrâneo Fernando de Castro, “… /a/ breve obra de poeta (poemas em prosa) – escreve P.S. continua dispersa –” e o autor, aqui, por identificar e pelo menos já uma vez suposto um pseudónimo de Fernando Pessoa, por ambos terem traduzido textos espíritas para a mesma editora. Confirmou-se então que ele fora morar aí, o que vim a encontrar depois, com a data aproximada, na revista aqui em Lisboa, ISIS, em que ele muito colaborava como espírita que era e tradutor de, entre outros mestres teósofos, Alain Kardek” (Ávila, 2005: 122).

Vale a pena continuar com a citação pelo que ela revela sobre o espírito de curiosidade e de investigador que era o de Pedro da Silveira. Ermelindo Ávila prossegue extraindo passagens da mesma carta:

“Em tempos encontrei numa revista de Lisboa, esta literária, colaborações dele, das quais então tomei nota. Mas perdi-a, lamentavelmente. Não desisto, porém, de rever essas suas colaborações e, juntando-as ao que vem no Almanaque Açores de Andrade [sic] (sete textos), publicar a pequena obra do poeta, na realidade bom.” “Agora mesmo vou escrever à Conservatória do Registo Civil daí pedindo que me forneçam a certidão de óbito de Fernando de Castro. A partir dela, com seus dados, verei, no Arquivo da Horta, quando nasceu. Mas gostaria de saber mais a seu respeito e é por isso que venho maçá-lo. Vagamente sei que seria professor aqui e que era formado, mas não sei em quê nem se por Coimbra ou Lisboa. …” “O Fernando de Castro teve relações com vários intelectuais, além de Fernando Pessoa: por exemplo, o Castelo Branco Chaves e o Alfredo Pimenta (também ele poeta – melhor, sem dúvida, do que como historiador panfletário). Dei-me com o Castelo Branco Chaves, que deixou de ser monárquico e se ligou à Seara Nova, mas, infelizmente, não soube, enquanto ele vivo, que se dava com o Fernando de Castro” (Á vila, 2005: 122-123) (2).

E por aí fora assim, pois era assim Pedro da Silveira nas (certamente milhares de) cartas que por aí dele haverá. Se as guardaram todas, elas constituem um manancial precioso de informação literária, histórica, cultural e sociológica, repleto de entremeados comentários de natureza pessoal, satíricos e mordazes, ou simplesmente (por que não dizê-lo?) da má-língua em que ele se refastelava nivelando todos e reduzindo-os à sua condição de mortais, criaturas humanas com mazelas escondidas nos armários que ele se deleitava a espreitar.

Tentei conseguir de Pedro da Silveira uma entrevista para um número especial da Gávea-Brown que preparava sobre ele, e que só não saiu porque esperei anos pelo material que me prometera: alguns poemas, um conto de temática luso-americana e mais algumas peças de que me falara e que teriam cabida numa revista dedicada à presença portuguesa na América do Norte. Quanto à entrevista, enviei-lhe as perguntas e garantiu-me a dada altura que tinha já respondido a todas, faltando-lhe todavia verificar uns pequenos dados. Insisti com ele para ma remeter mesmo inacabada, receando que, como acontecia com inúmeros dos seus trabalhos, se perdesse nas gavetas, vítima de pequeninas incompletudes que, no seu perfeccionismo, Pedro da Silveira achava serem graves lacunas.

Devem, pois, estar no espólio do poeta e erudito as respostas às seguintes perguntas que lhe enviei para a referida entrevista:

– O seu bisavô andou pelas Américas. O que sabe dele?

– O seu avô e um tio andaram por aqui. Que sabe deles?

– Que mais familiares teve por aqui?

– Fala repetidamente de António Maria Vicente. Que sabe dele?

– Que sabe de Garcia Monteiro que ainda não esteja escrito?

– Nunes da Rosa esteve nas Flores e lá escreveu Pastorais do Mosteiro. Nascido na América, a América está muito presente nos seus contos. Que nos diz de Nunes da Rosa que ainda não esteja escrito?

– Que sabe de Alfred Lewis que ainda não esteja registado em textos impressos?

– Quer falar-nos de baleeiros das Flores (de novo a pergunta refere-se a informações não escritas ainda)?

– De que outras figuras açorianas emigradas para a América gostaria de falar por achar que não são devidamente conhecidas e apreciadas?

– A sua poesia está repleta de referências à América do Norte, sobretudo à Califórnia. Que papel tinha a América no imaginário da cultura florentina da sua adolescência?

– Que escritores americanos leu nos anos formativos da sua adolescência?

– Diz-se que se lia muito nas Flores nos tempos em que não havia televisão. É mito ou verdade?

Acredito que uma simples busca no espólio me seria capaz de desencantar as respostas de Pedro da Silveira com a preciosidade de dados que elas certamente contêm, por mais incompletas que possam estar. Optei, todavia, por guardar para mais tarde a investigação e deixar assim simbolicamente incompleta esta homenagem. O baú de Pedro da Silveira terá muito que contar nas décadas vindouras. E seria bom que alguém começasse para já a empresa de recolher as suas cartas, porque pelo menos o espólio guardado na Biblioteca Nacional está seguro; as cartas, porém, andam ainda à deriva, sob pena de muitas virem a desaparecer. Essas cartas referem frequentemente a lista enorme de projectos que Pedro da Silveira tinha entre mãos. De vários me falou ele nas mencionadas entrevistas, bem como em longas conversas que com ele tive, particularmente durante a semana em que esteve na Nova Inglaterra para uma homenagem que lhe promovemos na Casa dos Açores, de colaboração com o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University. Fui seu motorista diário durante essa semana alargada.

De um dos seus projectos parece todavia não ter falado muito. Pelo menos nenhum dos seus amigos dele tem notícia. Trata-se da tradução de D. Quixote (Cervantes, 1966). Comprei o clássico em Angra, na Loja do Adriano em Março de 1967 e li-o nesse mesmo ano, mas não me recordava de ser Pedro da Silveira o tradutor. Até reencontrar há pouco tempo esse mesmo exemplar que se me ia afigurando único, pois ninguém parecia saber da tradução e edição de que nem mesmo a Biblioteca Nacional possuía cópia. Mas essa história ficará para outra altura, porque este terceiro andamento da minha homenagem a Pedro da Silveira quero deixar, como indicado no título, sob o signo do inacabado e do inesgotável.

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(1) Ainda uma outra que com ele fiz para a mesma série, em 1985, foi por incúria desgravada pelos técnicos da estação.

(2) Este texto é datado de 16 de Julho de 2003.

Bibliografia

Ávila, E. (2005), Figuras e factos. Vol. 2, Lajes do Pico, Câmara Municipal.

Cervantes, M. (1966), D. Quixote de la Mancha. 3.ª ed., Lisboa, Portugália Editora, Biblioteca dos Rapazes, n.º 16 [Tradução e adaptação de Pedro da Silveira, capa e ilustrações de João da Câmara Leme].

Monteiro, G. (1979), Os Açores de John Updike e Pedro da Silveira, Atlântida, XXIII, 3: 3-8.

Nemésio, V. (1958), Conhecimento de Poesia. Salvador, Bahia, Livraria Progresso Editora.

Whedon, T. (2002), Marginal Notes: An Islander’s View, The Swanee Review, CX, 1: 124-134.

Última actualização a 10.07.2007 Voltar ao topo